Confira a entrevista.
“Os desorganizados” são a “novidade” das manifestações que tomaram as
ruas de várias cidades brasileiras nos meses de junho e julho, avalia a
jornalista
Ivana Bentes, em entrevista concedida à
IHU On-Line por e-mail.
Eles entraram em cena com “seus cartazes, memes, fantasias, como se
estivessem postando em uma timeline, com expressões singulares e
inventivas, muitas vezes sozinhos ou em pequenos grupos de amigos”,
assinala.
Na avaliação dela, trata-se de um “momento intenso de potencialização
política e da emergência de novos discursos e atores, que usam as redes
sociais e se organizam conectando redes digitais
com os territórios e os corpos”. E acrescenta: “Olhando para as imagens
produzidas, cartazes, memes na internet, hashtags, vídeos e
fotografias, encontramos uma transversalidade e complementariedade
desses movimentos e discursos”.
Ivana também analisa as narrativas de comunicação
que surgiram com os protestos, e assegura que “a comunicação é a própria
forma de mobilização, não é simplesmente uma ‘ferramenta’”. Ou seja,
trata-se de uma “esfera midiática ativista”. E dispara: “A comunicação
feita em tempo real pela Mídia Ninja, por exemplo, já é uma manifestação
política e mobilizadora”. Para ela, a “
Mídia Ninja não pode ser reduzida ao campo do jornalismo
,
mas aponta para um novo fenômeno de participação social e de
midiativismo (ativismo e protestos), que utilizam a mídia e as redes
sociais e celulares móveis e outras tecnologias para produzir um estado
de comoção e de mobilização”.
Ivana Bentes é graduada em Comunicação Social,
mestre e doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ. Atualmente leciona no Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da mesma universidade, onde também é diretora da Escola de
Comunicação. É autora de
Cartas ao Mundo: Glauber Rocha (Companhia das Letras, 1997) e
Joaquim Pedro de Andrade: a revolução intimista (Editora Relume Dumará, 1996). É co-editora das revistas
Cinemais: Cinema e outras questões audiovisuais e
Global (Rede Universidade Nômade).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Que análise faz acerca do uso das imagens e das
redes sociais nas manifestações que ocorreram no Brasil? Quais são os
discursos presentes nas imagens e nas redes?
Ivana Bentes - As manifestações e protestos no
Brasil que explodiram em junho/julho são um acontecimento no sentido
mais radical dessa palavra, expressam uma crise profunda que é quando
não suportamos mais aquilo que suportávamos antes e faz ver o que tem de
intolerável num determinado contexto ou momento. Ao mesmo tempo é a
condição para emergir novas possibilidades de vida, de pensamento
político, de formas de convivência. É uma redistribuição dos desejos
.
E mesmo os protestos irrompendo de forma imprevisível, já havia um
imaginário agindo e mobilizando: a luta contra a usina hidrelétrica de
Belo Monte e defesa das terras e cosmovisão indígenas; as
Marchas da Liberdade
em todo o Brasil em 2011; o movimento de ocupação das praças e espaços
público em 2012; a mobilização na Cúpula dos Povos durante a Rio +20; a
comoção em torno de Pinheirinho e das mortes de jovens nas periferias do
Brasil; as centenas de petições online com milhares de assinaturas em
torno das mais diferentes causas; o movimento Existe Amor em SP que
mobilizou os coletivos e parte da periferia de São Paulo; os bombeiros
do Rio em confronto com o governo; as marchas do MST atravessando o
pais, a
Marcha das Vadias; a
Marcha da Maconha etc.
Destaco a emergência de novas linguagens nesses movimentos urbanos: as mulheres da
Marcha das Vadias
exibindo seus seios e corpos pintados, reivindicando direitos e
liberdade, ou as bicicletadas, com os manifestantes pedalando nus pelas
avenidas e ruas de São Paulo e enfatizando a relação do corpo com seu
transporte e fazendo do corpo outdoors contra as mortes dos ciclistas
numa cultura dominada por automóveis. Ou ainda os corpos em risco e
confronto dos
Black Bloc.
Ou seja, falamos de uma reinserção do corpo e dos corpos nas
manifestações. Estamos nesse momento intenso de potencialização política
e da emergência de novos discursos e atores que usam as redes sociais e
se organizam conectando as redes digitais com os territórios e os
corpos. Olhando para as imagens produzidas, cartazes, memes na internet,
hashtags, vídeos e fotografias, encontramos uma transversalidade e
complementariedade desses movimentos e discursos. Trata-se de um momento
decisivo em que demandas singulares e plurais se encontram num impulso
de mobilização e ação. Em termos estéticos o que vi nas ruas foi uma espécie de carnaval político
com blocos de manifestantes em tornos de causas, geralmente de grupos
mais organizados e corporativos, movimentos que já estavam aí.
Desorganizados
Mas a grande novidade foi a entrada em cena dos desorganizados que
vieram nas manifestações com seus cartazes, memes, fantasias como se
estivessem postando em uma timeline: com expressões singulares e
inventivas, muitas vezes sozinhos ou em pequenos grupos de amigos.
Percorrer essa “linha de tempo” nas ruas, com os “posts” passando com
seus apelos e formas de comover e buscar a atenção, a necessidade de se
fazer um percurso dentro mesmo das manifestações para não “congelar” os
sentidos foi uma experiência nova. A violência dos embates dos corpos
dos manifestantes com a polícia é outro ponto decisivo. Violência que
saiu do cotidiano das periferias para impactar (com imagens chocantes e
mobilizadoras) o imaginário do país todo.
O que vi de mais próximo do que está acontecendo agora no Brasil, em termos de linguagem, foram as
Marchas da Liberdade,
em 2011, que conseguiram juntar e dar visibilidade aos novos movimentos
urbanos. Tenho a impressão (ver aqui o texto que escrevi sobre “A
Marcha da Liberdade e os futuros alternativos” em 2011
http://www.trezentos.blog.br/?p=5909)
que 2013 foi 2011 + 2012 elevado a enésima potência e com a entrada das
periferias e dos pobres, a chamada “classe C”, pós políticas de
redistribuição de renda e emergência de outros imaginários nas disputa
das cidades.
Retomo a questão que emergia em 2011, de um movimento de movimentos,
transversal, que não tinha nem tem um objetivo único, mas diferentes
reivindicações, muito pontuais de um lado e muito amplas, como a
liberdade, a participação direta, as políticas de descriminalização das
minorias, das drogas e de comportamentos. Ou seja, demandas pela
ampliação das liberdades e dos direitos.
Linguagens
Outro ponto em comum em termos de linguagens e que marcam as Manifestações de junho/julho: abolição dos carros de som (que monopolizam os
discursos), o surgimento de micro grupos com seus pequenos megafones,
músicas e paródias. Cartazes escritos à mão, colaborativos e singulares,
muitos feitos apenas momentos antes, na rua mesmo. Uma “postagem”
coletiva na rua, conectada aos territórios e às timelines, com grupos
conectados às lutas históricas e o afluxo de uma outra multidão, dos
“desorganizados”, a grande novidade dessas manifestações
2011/2012 foi em parte um ensaio geral para 2013, inclusive em termos
de uso das redes sociais e as transmissões ao vivo pela internet com
uso de celulares e 3G na mão dos manifestantes postando fotos nas redes
sociais, chamando para as ruas no Twitter, com os debates sobre as
marchas e mobilizações na Postv.org .
Foi nessas manifestações que vi, pela primeira vez, o poder e a
potência do ao vivo, funcionando não como “jornalismo” ou reportagem,
mas como mídia de comoção e de mobilização, como midiativismo, como
vimos agora, realizados pelo mesmo grupo que está na base da
Mídia Ninja, a rede
Fora do Eixo articulada com muitos outros movimentos e coletivos de São Paulo.
Panela de pressão
É importante destacar que foi a luta pelo barateamento dos
transportes públicos, tendo como horizonte a Tarifa Zero, em termos
políticos e de imaginário, que fez explodir essa panela de pressão, a
luta dos 0,20 centavos do
Movimento Passe Livre - MPL de
São Paulo. Um movimento com oito anos que sempre saiu às ruas, que
ganhou essa dimensão massiva, como a gota d’água, que faz explodir e
inundar o país em torno de uma questão decisiva, material, mas que
incide no cotidiano de milhões de brasileiros.
A vitória do
Movimento Passe Livre em São Paulo, Rio
de Janeiro e outras cidades, forçando os governantes a revogarem o
aumento na tarifa de ônibus, trem e metrô diante das mobilizações nas
ruas, não parou os protestos. O que mostra que o nível de insatisfação e
as pautas eram muito mais amplas: os gastos com os mega-eventos e a
Copa do Mundo, as remoções dos pobres de suas casas, projetos de
gentrificação das cidades, a criminalização de comportamentos (gays,
mulheres, minorias), o “estado de exceção” nas periferias com morte
cotidiana de Amarildos etc.
Ao mesmo tempo, a violência da polícia nas manifestações em São Paulo
e depois no Rio de Janeiro e em todo o Brasil foram decisivas para
mobilizar e indignar, mesmo depois que o
MPL saiu da
organização dos protestos e juntou-se às demais manifestações, a
indignação explodiu e as pautas se ampliaram e alastraram de forma
plural.
Violência
Esse efeito de indignação passa pelas milhares de imagens postadas em
tempo real das caras e corpos violados por balas de borracha que
atingiram os rostos de manifestantes e jornalistas, as bombas de gás
lacrimogêneo e spray de pimenta atiradas contra a multidão, sem nenhuma
interlocução.
A violência da polícia (como na repressão da
Marcha da Maconha
em 2011) fez explodir um contra-discurso em tempo real, ao vivo e em
fotos e mensagens postadas nas redes. A rejeição e indignação se tornou
viral com milhares de denúncias de uma polícia militarizada e bélica,
vinda do modelo e mentalidade da ditadura militar atuando de forma
radical e excessiva nas manifestações de ruas.
A violência da polícia nas manifestações de junho/julho fez entrar em cena a estratégia
Black Bloc de
ataque aos signos e simbologias das corporações, marcas, bancos e a
emergência de uma linguagem da violência, politizada, com seus
participantes de negro, coturnos e máscaras cobrindo o rosto.
Sobem os
cartazes feitos
à mão na sua singularidade e se baixam as bandeiras prontas e os
cartazes massificados por quem tem estrutura e organização. É
sintomático que nas primeiras manifestações, em São Paulo, a
hostilização das bandeiras partidárias e de seus filiados tenha criado
um constrangimento novo, que apontou para a crise e limites da
democracia representativa. Um conflito que se distensionou adiante, mas
não desapareceu.
Popularização dos “Escrachos”
Em termos de linguagens os protestos de junho/julho popularizaram os
“escrachos” ou “escraches”, nome dado a uma estratégia de
constrangimento e pressão em que os ativistas se dirigem para a casa ou
lugar de trabalho de alguém que querem denunciar e que simboliza uma
causa. Essa estratégia/linguagem surgiu na Argentina, para expor, em
frente as suas casas, para a sua vizinhança.
Acho importante destacar que o escracho força os limites do público e
do privado ao levar os protestos e constrangimentos para a casa,
vizinhança, locais da vida privada de personagens públicos, inclusive de
forma violenta. Destaco ainda o uso de fantasias, máscaras, encenações,
música, performance, confrontos com vítimas, e o humor. No Brasil o
escracho aos militares que comemoraram o
Golpe de 1964 no Clube Militar do Rio de Janeiro com projeção das imagens das vítimas da ditadura em 2012 é um exemplo.
Durante as manifestações vimos um momento extraordinário de escracho
com o evento/protesto mobilizado pelas redes sociais chamado “O
Casamento de Dona Baratinha”, convidando os manifestantes a participarem
da festa de casamento de
Beatriz Barata, neta do maior empresário de ônibus no Rio de Janeiro,
Jacob Barata, um dos alvos dos protestos contra a precariedade e privatização dos transportes públicos no rastro do
Movimento Passe Livre - MPL.
O escracho começou na cerimônia de casamento na Igreja do Carmo, com
cartazes e manifestantes vestidos de noivas e acabou numa manifestação
performance de humor e constrangimento na porta do Hotel Copacabana
Palace, signo do luxo e da elite no Rio de Janeiro. O nível de violência
simbólica e real nesse escracho, com a abordagem dos convidados nos
seus carros importados chegando à festa numa data simbólica, o 14 de
julho da Revolução Francesa.
A “tomada” do Copacabana Palace (com um pequeno grupo protestando na
sua entrada) foi um dos menores atos em termos de números de pessoas,
mas significativo em termos de guerrilha simbólica. Manifestantes
vestidas de noivas e de garçons, buzinaço, panelaço, referências às
marcas e imaginário de luxo e das socialites (
Louis Vuitton,
Chanel,
champanhe, Botox, carrões, desfile de roupas e ostentação etc.) foram
se contrapondo às performances, falas e atos que se referiam ao mundo
dos busões, tarifas, precariedade, lotações, esperas e indistinção que
marca o serviço de transporte público oferecido a população.
Tudo isso com transmissão online pelos canais da
Mídia Ninja,
que enfatizava de forma humorada, mas constrangedora, a relação da
elite carioca e seu governante Sérgio Cabral com os empresários do
transporte, e escrachava esse “casamento” entre diferentes poderes.
Constrangimentos
Os constrangimentos aos convidados que chegavam à porta da Igreja e
do Hotel de luxo; a divulgação da lista de caros presentes para a noiva
na
H. Stern, os custos mirabolantes da festa,
produziram fatos que saíram do simbólico: um convidado dos noivos
atirando um cinzeiro na testa de um manifestante, um convidado atirando
da sacada aviõezinhos feitos com notas de 20 reais e xingamentos e
hostilidades entre os grupos.
A cobertura na grande mídia da ação performática acabou focando menos
na questão política dos transportes públicos e mais nas estratégias e
embates dos manifestantes. Um tipo de esvaziamento constante na
cobertura da grande mídia, que contrasta com o papel decisivo e ativo
dos midialivristas.
Esse tipo de linguagem, como o evento “Missa de sétimo dia dos
manequins da Toulon”, loja destruída durante as manifestações no Rio de
Janeiro, chamaram atenção para o desequilíbrio do noticiário sempre em
defesa da “privacidade” dos noivos, do patrimônio público, das marcas e
lojas afetados pelos protestos, que despolitizam essas ações como
“vandalismo”.
Na convocação para a “missa de sétimo dia” para os manequins da loja,
o texto do evento no Facebook deixa claro sua ironia e proposta: “Vamos
nos reunir para homenagear os manequins queimados, pois são mais
valiosos do que as pessoas que foram assassinadas na Maré. Viva o falso
moralismo! Pela morte dos manequins. Pelas
vítimas da Maré. PEC, Desmilitarização da PM, Impeachment do
Sérgio Cabral; Contra a quebra de sigilo na internet imposta pelo Cabral”.
Ainda no campo da linguagem e dos escrachos, o acampamento e os
protestos diante do apartamento do governador do Rio de Janeiro, Sérgio
Cabral, criou um fato político e midiático, em que o Estado mobiliza as
forcas policiais e protagoniza um embate campal, com bombas de gás
lacrimogêneo, repressão violentíssima, spray de pimenta e prisões em um
dos bairros da elite carioca, o Leblon. A forca simbólica e memética
dessas imagens e narrativas foram decisivas para a viralização da
indignação.
IHU On-Line - Percebe algo “comum” nas manifestações das ruas?
Ivana Bentes - A forma rede, na sua configuração
P2P, cooperativa, desindividualizada, não responde mais aos atos de fala
e de comando vindos de uma centralidade qualquer (partidos, mídia,
ONGs, grupos já previamente organizados etc.), mas emerge como uma rede
policêntrica ou distribuída, capaz de se articularlocal globalmente
,
numa conexão máxima e capaz de rivalizar (inclusive por sua
imprevisibilidade) com as redes constituídas dos poderes clássicos. Ao
mesmo tempo, acho equivocada a crença de que os grupos que se
auto-organizam consigam se manter sem uma força aglutinadora e sem
trabalho de organização.
IHU On-Line - No caso específico da articulação durante as
manifestações, que semelhanças e disparidades percebe entre a divulgação
de informações pelas redes sociais e pelas mídias tradicionais? Percebe
que os jovens, por exemplo, articulam-se pelas redes, mas a grande
massa ainda é informada a partir da imprensa tradicional? Como essas
duas formas de interação e informação repercutem nas manifestações?
Ivana Bentes - Vimos a passagem entre esses dois
sistemas, que são complementares. Pois da mesma forma que a mídia
tradicional informava o grande público, essas mesma matérias repercutiam
nas redes e eram criticadas, desconstruídas, analisadas, confrontadas
com outras informações e análises. O que vejo de semelhanças é o
reconhecimento da força do ao vivo. A grande mídia custou para perceber
que a intensidade do que se passava tinha que ter um fluxo de
transmissão direta. Já nas redes esse fluxo do ao vivo e a possibilidade de transmitir os embates quando os jornalistas já
tinham se retirado (confrontos da policia com os manifestantes, portas
de delegacia, pequenos acontecimentos de resistência) foram o
diferencial das mídias livres. Outra diferença foi a participação dos
espectadores nos chats de transmissões das mídias livres, informando,
comentando, orientando as transmissões de forma realmente interativa e
intensa.
Fenômenos como a
Mídia Ninja estão para as novas
mídias como a informalidade do Pasquim no jornalismo alternativo dos
anos 1970, ou um programa como o Abertura do
Glauber Rocha,
desengessando as regras da imprensa e da televisão. As redes criam
pautas novas, que foram incorporadas pela grande mídia e ao mesmo tempo
repercutiram, desconstruíram e resignificaram as matérias da TV. A
linguagem desengessada e urgente fala diretamente para os jovens e para
todos que buscam linguagens experimentais próximas do cotidiano e da
vida.
IHU On-Line - Pode nos explicar em que medida as imagens, as
redes sociais e a mídia de guerrilha estão no centro dos acontecimentos?
Ivana Bentes - Estamos diante de uma mobilização global político-afetiva nas ruas e nas redes. O
15M
espanhol torna-se decisivo como referência, ao transmitir ao vivo
durante centenas de horas ininterruptas e com milhões de visitas e
acampados virtuais, utilizando ferramentas de geo-referenciamento para
fincar bandeiras e cartografar acampamentos em praças reais e virtuais
por toda a Espanha, e depois pelo mundo com o
Occupy Wall Street, e as manifestações de junho e julho no Brasil.
Também no Brasil foram utilizados as mais diferentes ferramentas e
linguagens (imagens viralizadas, vídeos, postagens, tweets, hashtags,)
para criar ondas de intensa participação, em que a experiência de tempo e
de espaço, a partilha do sensível, a intensidade da comoção e
engajamento, são construídos num complexo sistema de espelhamento e
potencialização entre redes e ruas. Nesse sentindo a comunicação é a
própria forma de mobilização, não é simplesmente uma “ferramenta”, esse é
o sentido dessa esfera midiática ativista. A comunicação feita em tempo
real pela Mídia Ninja, por exemplo, já é uma manifestação política e
mobilizadora.
IHU On-Line - Que novas formas de mídia surgiram por causa
das manifestações? Qual a peculiaridade e atuação da Mídia Ninja no
Facebook e no Twitter? A partir da experiência da Mídia Ninja, que
potencial vislumbra para as redes sociais enquanto instrumento para
participação política?
Ivana Bentes - Em primeiro lugar a
Mídia Ninja
não pode ser reduzida ao campo do jornalismo, mas aponta para um novo
fenômeno de participação social e de midiativismo (ativismo e
protestos), que utilizam a mídia e as redes sociais e celulares móveis e
outras tecnologias para produzir um estado de comoção e de mobilização.
A
Mídia Ninja - Narrativas Independentes Jornalismo e Ação
cobriu, colaborativamente, as manifestações em todo o Brasil,
"streammando" e produzindo uma experiência catártica de “estar na rua”,
obtendo picos de 25 a 100 mil pessoas online, o que é inédito para uma
mídia independente feita em sua maioria por jovens que não são
jornalistas, mas ativistas.
A Mídia Ninja, assim como as dezenas de outras iniciativas de mídia
autônoma, fez emergir e deu visibilidade ao “pós-telespectador” de uma
“pós-Tv” nas redes, com manifestantes virtuais que participam ativamente
dos protestos/emissões discutindo, criticando, estimulando, observando e
intervindo ativamente nas transmissões em tempo real e se tornando uma
referência por potencializar a emergência de “ninjas” e midialivristas
em todo o Brasil.
Indo além do “hackeamento” das narrativas, a
Mídia Ninja passou a pautar a mídiam
corporativa
e os telejornais ao filmar e obter as imagens do enfrentamento dos
manifestantes com a polícia, a brutalidade e o regime de exceção
(policiais infiltrados jogando coquetéis molotov, polícia a paisana se
fazendo passar por manifestantes violentos, apagamento e adulteração de
provas, criminalização e prisão de midiativistas, estratégias violentas
de repressão, gás lacrimogêneo e balas de borracha etc.).
Ninja Somos Todos, o midialivrismo e o midiativismo
se encontram numa linguagem e experimentação que cria outra partilha do
sensível, experiência no fluxo e em fluxo, que inventa tempo e espaço,
poética do descontrole e do Acontecimento. A
Mídia Ninja explodiu porque são símbolos de uma
Mídia da Multidão,
pois também criam fatos políticos, intervém nos fatos, e se tornam
parte das notícias (os integrantes do Mídia Ninja foram detidos e presos
pela polícia acusado de incitarem as manifestações).
Midialivrismo
A
Mídia Ninja é a face mais visível de um fenômeno
mais amplo de midialivrismo, que conseguiu provar, através das filmagens
ao vivo, a existência de policiais infiltrados nas manifestações,
policiais à paisana cometendo atos de violência e fora da lei. Ou seja,
além de produzirem fatos e participarem das manifestações mostrando as
causas, pautas e motivos dos protestos, a Mídia Ninja passou a pautar a
mídia corporativa e os telejornais (como o Jornal Nacional, da Globo, e
jornais) ao filmar e obter as imagens do enfrentamento dos manifestantes
com a polícia.
Essa prática, de vigiar a polícia com câmeras e fotos, é conhecida
como “Copwatch”, é uma estratégia midiativista de usar transmissões
online para expor e monitorar polícia online. Essa é a diferença do
miditivismo para o jornalismo de relato que dá a notícia e vai embora,
alheio as suas consequências. Além de "sofrerem" todas as
arbitrariedades e violência junto e de dentro das manifestações, o
"pós-jornalismo" e midiativismo usa o poder/potência de exposição online
das autoridades policias, delegados, ao monitoramento dos muitos e a
multidão em tempo real.
Foi com essa estratégia que a Mídia Ninja foi para a porta da 9a. DP
do Catete no Rio de Janeiro, e depois seguiu para a porta do Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro depois da prisão de dois dos seus integrantes
e manifestantes. A
Mídia Ninja transmitiu online a
prisão de um de seus integrantes, fez plantão até que 11 deles fossem
liberados, e ainda permaneceram numa vigília midiativista em frente ao
Tribunal de Justiça - TJ do Rio de Janeiro até o habeas corpus do último deles, levado para Bangu.
Na madrugada, com uma multidão ao vivo e outra online, colocaram nos
TTs
mundiais a hashtag #BrunoResiste e pela manhã #BrunoLivre, referindo-se
ao jovem acusado sem provas de portar explosivo e que passou a ser
acompanhado pelos ativistas e manifestantes e pela
Ordem dos Advogados do Brasil - OAB.
Dossiê público
As manifestações de junho/julho no Brasil reinventaram a prática do
Copwatch (também Cop Watch) já existente como uma rede de organizações
ativistas nos Estados Unidos, no Canadá, e na Europa, com objetivo de
observar e documentar a atividade policial, enquanto procura sinais de
má conduta, brutalidade e arbitrariedade policial.
A
OAB, por meio das dezenas de advogados que prestam
auxílio jurídico aos manifestantes, e nos embates com a polícia, vem
adotando essa prática e solicitando que manifestantes filmem e subam nas
redes os vídeos, fotos num inédito dossiê público audiovisual que
servirá como documentação e prova das arbitrariedades cometidas pela
polícia.
Trata-se de usar o efeito-mídia não simplesmente de forma
sensacionalista, mas ativista e consequente. O monitoramento da
atividade policial nas ruas é uma forma de expor, desconstruir e acabar
com a brutalidade policial que, no Brasil, ainda adota o símbolo da
"caveira", da guerra brutal contra “inimigos” e não a policia cidadã. O
Copwatch foi iniciado em Berkeley, Califórnia, em 1990, e está sendo
reinventado no Brasil neste junho/julho de 2013 e depois.
A
Mídia Ninja catalisou esse "contra-discurso" ao
mostrar a brutalidade e o regime de exceção da polícia, com policiais
infiltrados jogando coquetéis molotov, políciia à paisana se fazendo
passar por manifestantes violentos, criminalização e prisão de
midiativistas, estratégias violentas de repressão com gás lacrimogêneo e
balas de borracha etc. Enquanto a mídia corporativa mostrava apenas as
razões para reprimir, a Mídia Ninja mostrou as razões para protestar.
Estamos vendo surgir uma nova forma midiática de intervenção política
e participação social, um novo midiativismo e a possibilidade de
criação de uma rede de Pontos de Mídia articulada de forma horizontal e
distribuída em todo o Brasil. Ou seja, a Mídia Ninja é uma ativadora de
desejos e de mundos, disputando narrativas, memes, causas e dando
visibilidade a pluralidade de mundos e projetos políticos.
IHU On-Line - O que significa pensar uma consciência em rede? Desta consciência, pode surgir uma consciência política?
Ivana Bentes - Exprimir o “grito”, como escreveu
Jacques Ranciere, tanto quanto dar a palavra a outros sujeitos políticos
é o modo de desestabilizar a partilha do sensível e produzir um
deslocamento dos desejos e constituir o sujeito político multidão.
Trata-se de política como comoção, catarse, mas também negociação e
mediação.
Essa mobilização política-afetiva (processo e irrupção de um
acontecimento diferencial das lutas políticas desse início de século),
sua capacidade de contágio, levou multidões às praças e ruas e
constituiu um só fluxo, intenso, com os manifestantes acampados da Porta
do Sol aos manifestantes nas ruas das cidades brasileiras nas Jornadas
de Junho, derrubando e destruindo os símbolos de corporações, dos
governos e do Estado.
IHU On-Line Quem são os Black Bloc e como a atuação deles é interpretada nas manifestações?
Ivana Bentes - Os
Black Bloc são
uma estratégia de ação, uma tática desenvolvida por manifestantes,
grupos políticos e ativistas desde os anos 1980, na Alemanha, presentes
nos anos 1990, em Seattle, e nos
protestos antiglobalização,
táticas que “viajam” de forma cada vez mais rápida e são incorporadas
pelos manifestantes em todo o mundo. É a globalização das linguagens da
resistência. Seattle, 1999, Gênova, 2001, Toronto, 2010, Protestos de
Londres,
Occupy Wall Strett, 2011, Egito, Turquia, 2012, e Brasil, 2013.
É importante ressaltar que utilizam a violência e o ataque a símbolos
do capitalismo e destroem e depredam signos (fachadas de agências
bancárias, vitrines de lojas, caixas de banco, anúncios e placas
publicitárias, outdoors etc.).
Ou seja, trata-se menos de um ataque e “destruição do patrimônio”,
como enfatiza a grande mídia, e mais de um ataque e guerrilha semiótica,
contra os signos. A estetização e a linguagem começam nas roupas
pretas, coturnos, máscaras cobrindo o rosto, que cria um “bloco negro”
de proteção entre os manifestantes e a polícia. Essa função de proteção
estava na origem da tática nos anos 1980 na Alemanha. Nos anos 1990
surgiram as ações violentas como em Seattle, em 1999, nos protestos
contra a
Organização Mundial do Comércio – OMC, quando os Black Bloc destruíram o centro econômico da cidade.
O debate sobre o uso ou não das máscaras nas manifestações foi
importante para explicitar como o limite do legal e ilegal depende de um
Estado e corporações que disputam o monopólio da força e das leis.
Tentou-se proibir o uso de máscaras pelos manifestantes e ao mesmo tempo
se admitia o rosto coberto e a não identificação de policiais nos
confrontos.
Os
Black Bloc, com a estética das máscaras e
“uniforme”, se igualam simbolicamente aos policiais. E se tornam ao
mesmo tempo os protetores dos manifestantes, mas também aqueles que, no imaginário da mídia de massa
,
são os provocadores da violência e os incitadores. Essa visão, a meu
ver, distorcida, dos vândalos, dos depredadores, também foi disputada
nas redes, que questionaram a tentativa de criminalizar uma ação
política. Também foram as ações violentas dos Black Bloc em represália a
repressão policial que tiveram grande repercussão nas redes sociais,
como uma violência de resistência com sinal positivo. Acho que podemos
dizer que os Black Bloc fizeram emergir uma estética e pedagogia da
violência.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Ivana Bentes - A
Mídia Ninja
despertou um debate nacional sobre o jornalismo clássico e a
possibilidade da emergência das mídias da multidão. A entrevista de
Bruno Torturra, do
Mídia Ninja, e de
Pablo Capilé, no
Roda Viva,
deixaram os entrevistadores da grande imprensa atônitos e logo em
seguida o programa disparou não apenas um debate sobre mídia,
comunicação e jornalismo, mas um processo de linchamento público
(vindo do campo conservador e de pessoas nas redes sociais) em torno do
Fora do Eixo, que laboratoriou esse projeto (como já expliquei acima, desde as
Marchas da Liberdade em 2011).
Vimos outro fenômeno de redes se configurar: a reação das grandes empresas conservadoras, como a
Revista Veja e uma espécie de histeria denuncista envolvendo aspectos morais que buscam desqualificar a reputação do
Fora do Eixo e desmoralizar uma de suas lideranças de maior visibilidade,
Pablo Capilé.
As acusações em sua grande parte não tem incidência jurídica, legal,
consistente, mas uma espécie de viral de difamação (sem checagem, apenas
com base no emocional dos depoimentos de pessoas rompidas com o
Fora do Eixo).
Desqualificação violenta da sua forma de organização como de "seita" (quando se trata de uma rede coesa e orgânica), tentativa de
criminalizar o sistema de colaboração livre como “trabalho escravo”,
malversação dos princípios da economia solidária em “mais valia”.
Quando o que temos são pessoas trabalhando livremente para uma rede que
retorna o trabalho em moradia, roupa, serviços, viagens, rede de
relações, reputação, formação etc. Desmonetizando as relações e criando
um capital coletivo. Criminalização de comportamentos (amor livre, novas
relações afetivas, padrões de comportamento desconfigurados) e uma
amplificação dos problemas da convivência em grupo (rompimento de
relações afetivas, sexuais, de identificação com o grupo), violências
subjetivas comuns ao convívio intenso e presentes em todos os grupos
sociais (família, escola, empresa, clube, etc.). É um campo para ficar
atentos. A difamação na era da velocidade técnica e as formas de
construção e desconstrução das reputações em tempo real.