quinta-feira, 23 de abril de 2015

Planos de mobilidade urbana: prazo é o X da questão?


Na última década, a discussão sobre transporte e mobilidade urbana saiu das salas dos engenheiros de tráfego e urbanistas e literalmente ganhou as ruas. A má qualidade do transporte público, a paralisação das cidades em meio ao trânsito caótico, o valor das tarifas, o aumento da poluição e problemas de saúde decorrentes passaram a ser pauta central de movimentos sociais e organizações da sociedade civil, além de terem ganhado grande importância nas últimas eleições.
Nesse contexto, a Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU), instituída em 2012, se tornou uma das principais referências para o planejamento dos sistemas de transporte urbano, priorizando a circulação dos pedestres, ciclistas e do transporte público coletivo e maior integração modal. A política também determinou que municípios com mais de 20.000 habitantes, assim como todos os demais obrigados à elaboração de plano diretor, desenvolvam planos de mobilidade urbana, com a participação ativa da sociedade civil. A partir de abril de 2015, as cidades que não tiverem planos de mobilidade não poderão receber recursos federais destinados a mobilidade urbana.
Após 17 anos de tramitação no congresso, a política de mobilidade representa uma oportunidade ímpar para pensarmos uma nova forma de vivermos nas cidades, com mais qualidade de vida, menos emissões de gases de efeito estufa e poluentes locais, menos automóveis e mais justiça social. No entanto, desde 2012, temos observado lentos avanços em direção à sua efetiva aplicação, com baixa capacidade técnica e financeira dos municípios para implementação de suas diretrizes.
Tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei que estende o prazo para elaboração dos planos de mobilidade pelos municípios até abril de 2018. Por um lado, a extensão de prazo pode ser considerada como uma desmoralização da lei e levar à fragilização de suas exigências, tornando-a inócua. Por outro lado, é importante reconhecer as dificuldades de muitos municípios para elaborar os planos por falta de corpo técnico qualificado, escassez de recursos e de apoio federal para planejamento. Destaca-se que a elaboração de um plano de qualidade, com participação social efetiva, pode levar de 6 a 18 meses, dependendo dos dados locais disponíveis e do porte do município.
Assim como a Política de Mobilidade, diversas leis que tratam de temas urbanos foram instituídas a partir de 2001, exigindo a elaboração de planos tais como o Estatuto da Cidade, a lei do sistema nacional de habitação social, a lei de saneamento e a política nacional de resíduos sólidos. Com exceção da política de resíduos sólidos, todas as exigências com relação ao prazo e/ou conteúdo de planos instituídas por estas leis foram flexibilizadas. Mesmo assim, continua-se enfrentando diversos desafios para a efetiva implementação dessas políticas e elaboração de seus respectivos planos, demonstrando que esta flexibilização pode não ser a resposta mais adequada. No tocante ao tema de mobilidade, cabe observar que somente 36% dos 36 municípios que tinham a obrigação de elaborar um plano de transporte urbano integrado, instituído pelo Estatuto da Cidade, o fizeram. Com a Política de Mobilidade, o número de municípios obrigados a elaborar planos ultrapassa 2.000, aumentando de forma considerável os desafios para o cumprimento efetivo da lei.
Independente da extensão ou não do prazo para elaboração dos planos de mobilidade, cabe avaliar o processo de execução da Política de Mobilidade desde 2012 e identificar quais foram os desafios enfrentados pelos municípios para sua efetiva implementação. Se a maior parte dos municípios não desenvolveu seus planos no prazo de 3 anos estabelecido pela lei, será que a simples extensão de prazo será suficiente para garantir que elaborem planos de qualidade capazes de responder aos seus desafios de mobilidade e promover mais qualidade de vida para seus habitantes?
Vale ressaltar que a importância do plano no nível municipal vai muito além da exigência de sua elaboração para recebimento de recursos federais para mobilidade urbana. Ele é o principal instrumento para planejamento das intervenções e investimentos em mobilidade, e sua implementação deve guiar a forma de deslocamento das pessoas na cidade, juntamente com instrumentos de planejamento urbano, como o plano diretor e leis de zoneamento. Neste sentido, a elaboração de um plano alinhado com as diretrizes instituídas pela Política de Mobilidade é um passo fundamental para a realização de intervenções estruturadas, superando a lógica de projetos definidos por critérios estritamente políticos, sem conexão com as necessidades reais da maior parte da população. Portanto, independente da decisão sobre o prazo, a importância da elaboração e implementação de planos de mobilidade continuarão essenciais para a promoção de padrões de deslocamentos mais sustentáveis e a melhoria qualidade de vida nas nossas cidades.
A escassez de recursos humanos e financeiros locais é um dos principais desafios enfrentados para elaboração dos planos. O governo federal tem papel fundamental nesse âmbito, com ações para disseminação do conteúdo e da importância da lei, além de assistência técnica para sua efetiva implementação pelos municípios. Tem também a possibilidade de direcionar recursos para investimentos em projetos de mobilidade urbana, alinhados com os objetivos, princípios e diretrizes instituídos pela lei de mobilidade. No entanto, nos últimos anos, a política de investimentos para infraestrutura urbana através do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) disponibilizou grandes volumes de recursos para projetos específicos, sem grandes exigências de planejamento urbano integrado por parte dos municípios.
Neste contexto, não pode-se deixar levar pela ilusão de que a simples extensão do prazo para elaboração os planos de mobilidade seja a bala de prata capaz de resolver todos os desafios de planejamento e aplicação de um texto de lei considerado progressista. Para que não tenhamos que discutir novas extensões de prazo a cada vez que o vencimento se aproximar, é essencial que governo e a sociedade façam uma ampla análise sobre os desafios e oportunidades desde a criação da Política de Mobilidade e identifique que medidas precisam ser tomadas para uma aplicação plena e efetiva do conteúdo da lei.
Ana Nassar é mestre em ciência política pela UnB e gerente de políticas públicas do ITDP (Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento).

Bernardo Serra é mestre em economia pela Université Panthéon Sorbonne e coordenador de políticas públicas do ITDP.