segunda-feira, 22 de julho de 2013

Parlamentares e especialistas concordam em transformar transporte em direito social

Deputados, especialistas e ativistas reunidos hoje (9) no plenário da Câmara concordaram com a necessidade de transformar o transporte público no grupo de direitos sociais, como alimentação, educação e saúde. Na visão dos debatedores presentes à sessão, é preciso aprovar rapidamente a Proposta de Emenda à Constituição 90, de 2011, da deputada Luiza Erundina (PSB-SP), que recentemente passou pelos colegiados e está agora em comissão especial criada para debater o tema.

O autor do requerimento, deputado Beto Albuquerque (PSB-RS), que foi relator da PEC de Erundina e convocou a comissão geral de hoje, reiterou que é preciso rapidez para formar rapidamente o grupo encarregado por analisar o texto. A proposta ganhou tramitação mais rápida depois que manifestações de rua realizadas em junho forçaram a classe política a dar respostas, mas agora existe o receio de que a PEC fique esquecida nos corredores do Congresso.

“Para que haja soluções criativas no âmbito da política, precisa-se de vontade política, que hoje está vindo a partir das ruas”, disse Erundina. “Após a comissão, teremos duas votações na Câmara e duas no Senado”, lembrou, dizendo-se esperançosa quanto à aprovação da matéria.

“Esta PEC não pode ficar anos a fio aguardando sua discussão e aprovação”, disse a deputada Carmen Zanotto (PPS-SC). Ela criticou a situação do transporte público atual nas cidades brasileiras por fazer com que o cidadão precise gastar o mesmo tempo para trabalhar e para chegar ao local de trabalho.

A aprovação da PEC era um dos pedidos do Movimento Passe Livre (MPL), responsável por iniciar as manifestações que resultaram na revogação do aumento da tarifa de transporte público em São Paulo e no Rio de Janeiro, espalhando-se em seguida por dezenas de cidades graças à pressão popular.

Para Lucas Monteiro de Oliveira, que representou o MPL no plenário, uma das principais vitórias das marchas foi trazer a discussão sobre o transporte para onde ela deve realmente estar: no Congresso. “Agora em 2013, essa foi a principal vitória que conseguimos, depois de muito trabalho e mobilização”, disse, acrescentando que a questão central a ser debatida não é técnica, com foco apenas na redução das tarifas, mas sim sobre o modelo de transporte que se deseja para as cidades.

“Os movimentos conseguiram revogar o aumento das tarifas em mais de 100 cidades em junho. Isso é a força da população, interferindo diretamente na gestão da política do transporte”, afirmou Monteiro. “Mas o que precisamos discutir é em que cidade nós queremos viver, que cidade nós queremos construir”, completou, destacando a necessidade de se pensar o transporte com políticas públicas que permitam às pessoas participar das decisões e ter livre acesso às riquezas produzidas nas cidades.

Para Monteiro, a cobrança de tarifa é uma forma de exclusão de uma parcela da sociedade que não tem oportunidade de circular e de ter acesso a outros direitos sociais por não ter recursos financeiros. “Isso daria um total de 36 milhões de pessoas”, disse. Segundo ele, esse problema não deve ser encarado somente sob a ótica do financiamento, de como pagar isso. “Aqui é uma questão de garantir a mobilidade das pessoas e o acesso a todos os seus direitos, e não simplesmente como essa conta será paga”, completou.

O represente do MPL também criticou o fato de a maior parte dos recursos ser investida no transporte privado. “Atualmente, a politica de desoneração não resolve o problema da mobilidade urbana. Não é desonerando uma parte do setor privado que você vai permitir que as pessoas circulem pela cidade”, disse Monteiro, que defendeu a aprovação da PEC 90.

Também representante do MPL, Marcelo Pomar reforçou que o governo federal errou ao desonerar o setor automobilístico, contribuindo para o aumento de engarrafamentos e o caos no sistema viário. “A cada R$ 1 investido no setor público, R$ 12 são investidos no particular”, disse Pomar, que defende o fim do regime de concessão no transporte coletivo. “O poder público deve assumir sua responsabilidade de gerir o transporte coletivo. Além disso, o segundo passo é subsidiar o transporte, tratando-o como serviço público essencial, bancado por fundos específicos que seriam alimentados por cobranças feitas dos setores que se utilizam da força de trabalho originada por quem usa o transporte público.”

Para o deputado Carlos Zarattini (PT-SP), ainda existe “muita gordura” a ser cortada do lucro das empresas concessionárias de transporte público. Ele também defendeu a extensão do bilhete único para mais cidades brasileiras, a utilização da Cide para subsidiar a tarifa de transporte urbano e um maior investimento em metrôs nas maiores cidades do País, medidas que vêm sendo advogadas pelo também petista Fernando Haddad, prefeito de São Paulo.

Secretário dos Transportes da capital paulista durante a gestão Erundina (1989-92), Lúcio Gregori também criticou o atual modelo de concessões por criar “feudos” em estados e municípios. “Empresas por mais de 80 anos operam no mesmo estado ou metrópole. A cartelização com concessões ad infinitum resulta em falta de competitividade”, afirmou, cobrando a aprovação da PEC. “Só um processo de financiamento das tarifas é garantia para exercer esse direito por todos. Paga mais quem tem mais, menos quem tem menos, e não paga quem não tem.”

Para aplicar a mobilidade urbana como direito social, porém, o ex-secretário avalia que será necessária a criação do Código Nacional de Desempenho de Transporte Coletivo. “Assim como temos meta de inflação, temos de ter o código”, afirmou. Esse código traria exigências como câmbio automático e ar-condicionado para ônibus, além da proibição de usar chassis de caminhão para ônibus. “Isso [estrutura de caminhão] é para porco e não para gente. Eu não gosto de ser tratado como porco.”

A professora de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) Marilena Chauí disse que a lógica atual do transporte público no País reflete a sociedade brasileira “autoritária, oligopólica, vertical, que opera sob a forma do favor, da tutela e que não cria espaço público republicano”. Segundo ela, as metrópoles atuais dividem-se em um centro privilegiado e uma periferia excluída, sem direito a nada. Marilena Chauí também criticou a desoneração de impostos para empresas de ônibus. “Não podemos continuar a defender esses cartéis e alimentar seu lucro indiscriminado.”

O deputado Beto Albuquerque fez eco à necessidade de revisar o custeio do transporte público. “O transporte é financiado hoje 100% por quem paga a tarifa. Queremos buscar um novo modelo de financiamento e um novo modelo de transporte urbano para o futuro”, disse. O parlamentar reclamou que apenas 45% das 38 maiores cidades do Brasil têm um plano de transporte urbano e criticou a prioridade dada pelos governos ao transporte individual, com redução de impostos para automóveis. “Esse privilégio contrasta com a queda de passageiros transportados por transporte público.”

Segundo o técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Carlos Henrique de Carvalho, os últimos anos têm mostrado um aumento no acesso ao transporte privado, que ficou mais barato, e uma redução da demanda de usuários por meios públicos de locomoção.

Ele foi um dos autores da nota técnica “Tarifação e Financiamento do Transporte Público Urbano”, do Ipea, que analisou o transporte público nos últimos anos. De acordo com o estudo, enquanto o Índice de Preços ao Consumidor (IPCA), que mede a inflação no País, teve alta de 125% entre janeiro de 2000 e dezembro de 2012, o aumento das tarifas dos ônibus foi de 192% – 67 pontos percentuais acima da inflação.

“O impacto disso é muito grande para as cidades. As classes mais baixas estão tendo acesso a um bem durável, mas do ponto de vista da qualidade de vida urbana é um desastre”, disse, durante comissão geral no Plenário da Câmara que discute a política de transporte público no Brasil. Ele citou como problemas as mais de 40 mil mortes por ano por acidentes de trânsito, além do aumento da poluição e dos engarrafamentos cada vez maiores.

A pesquisa do Ipea evidencia que, para as famílias brasileiras mais pobres, o impacto médio do gasto com transporte público na renda domiciliar é de 13%, enquanto a média total, que inclui famílias de todas as faixas de renda, é de 3,4%. Entre 2003 e 2009, esse comprometimento foi amortecido pelo aumento geral de renda, mas, como o transporte privado ficou relativamente mais barato, grande parte do adicional de renda foi canalizada à aquisição de meios particulares de transporte.

Carvalho destacou ainda que a indústria de motocicletas no Brasil vem crescendo três vezes mais que o Produto Interno Bruto (PIB), e a indústria automobilística, duas vezes mais que o PIB.

O presidente da Diretoria Executiva da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos, Otávio da Cunha Filho, destacou que a crise no transporte vem de longa data. Segundo ele, ao longo dos anos tem sido possível observar o aumento do número de automóveis e a simultânea redução do número de ônibus circulantes. “Em 2010, 50% das pessoas se deslocaram pelo sistema público de transportes, e 50% pelo individual. Se continuarmos assim, em 2030 teremos 65% utilizando o transporte particular e apenas 35% o público”, alertou.

Ele defende um melhor aproveitamento dos recursos federais do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), para que sejam transformados em projetos efetivamente eficientes em termos de mobilidade urbana. Cunha Filho é favorável ainda a priorizar os ônibus nas vias públicas e a que todos os municípios com mais de 200 mil habitantes sejam obrigados a dispor de planos de mobilidade urbana desenvolvidos com participação da sociedade.

O coordenador da Associação Nacional dos Transportes Públicos, Antenor José dos Santos, defendeu mais atitude e gestão para viabilizar melhorias no transporte urbano. “Precisamos de atitude, gestão e ação. De leis e expertise técnica o Brasil já está bem servido”, afirmou. “Precisamos recepcionar o clamor das ruas e traduzir em políticas públicas em legislação e produção técnica.”

Ele criticou a lógica de privilegiar os automóveis em relação a outros meios de locomoção como bicicletas ou ônibus. Santos reclamou que o Brasil tem apenas 1.500km de ciclovias, enquanto Bogotá, capital da Colômbia, possui 420km e tem mais 220km em construção, integrados ao sistema de transporte.

O coordenador da Associação Nacional dos Transportes Públicos e diretor da ONG Roda Viva, Nazareno Stanilau Affonso, defendeu a aplicação da Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei 12.587/12), que destina ao automóvel 30% da rua. Os outros 70%, de acordo com a lei, devem ser destinados aos pedestres, às bicicletas e ao transporte público.

De acordo com o ativista, as prefeituras não conseguem gerir o sistema de transporte porque estão sucateadas. “Hoje temos sistemas em perfeita condição de controlar onde está cada ônibus, mas as prefeituras não conseguem analisar esse dados” , afirmou. Ele classificou como absurdo o foco do Estado brasileiro em universalizar o acesso do automóvel, com redução de impostos do setor, como política de transporte.

*Fonte: Site Rede Brasil Atual com informações da Agência Câmara.