sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

IHU On-Line entrevista Eduardo Vasconcelos sobre a força política dos apoiadores do automóvel

“É possível assegurar um transporte eficaz e de qualidade, mas não é possível fazer isto a baixo custo, pois a mobilização de infraestrutura, veículos e trabalhadores para o sistema de transporte não é barata”, diz o engenheiro Eduardo Vasconcellos.
A opção brasileira de seguir o padrão de mobilidade urbana norte-americano, baseado em um “modelo rodoviarista, que levou à desativação paulatina do sistema ferroviário e à construção de uma grande rede de rodovias”, ainda nos anos 1930, é uma das razões que contribuíram para o caos evidenciado no trânsito das metrópoles do país, pouco mais de 80 anos depois.
De acordo com Eduardo Vasconcellos, “a instalação da indústria automobilística na década de 1950 completou o conjunto de decisões estruturais. Àquela época não existia a preocupação com o espalhamento das cidades e a geração de congestionamentos, o que só veio a ocorrer nos EUA na década de 1950”.
Segundo ele, apesar de o Brasil ter um “sistema de regulamentação de transporte público” com “vantagens de organizar serviços legalizados, em que os veículos são submetidos a requisitos de qualidade e os trabalhadores têm seus direitos respeitados (o que não ocorre, por exemplo, na maioria dos países latino-americanos) (…), a rigidez dos contratos muitas vezes impede o governo de propor alterações relevantes para os usuários, pois isto acarretaria mais custos que não são cobertos pela tarifa”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o engenheiro assinala que os principais problemas relacionados à mobilidade podem ser resumidos em três aspectos: “a mobilidade precária das pessoas que precisam caminhar e usam o transporte público; o alto índice de acidentes; a grande emissão de poluentes”. Nesse sentido, as melhorias na área perpassam pela “redistribuição de empregos e atividades de forma que as pessoas tivessem de percorrer distâncias menores que as atuais, economizando tempo, dinheiro e energia”. Contudo, dispara: “Seguindo a tendência atual, aumentará o uso do automóvel e da motocicleta e diminuirá o uso do transporte público”.
Eduardo Vasconcellos é engenheiro civil e sociólogo. Fez mestrado e doutorado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo – USP e pós-doutorado em Planejamento de Transporte nos Países em Desenvolvimento na Cornell University, nos EUA. É assessor técnico da Associação Nacional de Transportes Públicos – ANTP e diretor do Instituto Movimento, de São Paulo, dedicado a estudos de mobilidade.
Confira a entrevista:
IHU On-Line - Quais são as principais transformações na mobilidade das cidades brasileiras desde os anos 1950 para cá?
Eduardo Vasconcellos - A maior transformação aconteceu na forma de um grande aumento dos deslocamentos diários, relacionado ao aumento da população urbana, e no aumento do uso de modos motorizados de transporte.
IHU On-Line – Quais são os principais problemas das metrópoles em termos de mobilidade? Quando se apontam soluções para a questão, que diretrizes devem ser fundamentais?
Eduardo Vasconcellos - Os principais problemas são: a mobilidade precária das pessoas que precisam caminhar e usam o transporte público; o alto índice de acidentes; a grande emissão de poluentes. Em relação às diretrizes, as mais importantes são a equidade na distribuição das oportunidades de mobilidade e o respeito ao meio ambiente.
IHU On-Line – Em que contexto histórico se deu a opção do Brasil pelo transporte individual? Ainda sobre essa questão, não foi possível evidenciar com antecedência o caos que essa opção poderia gerar a longo prazo?
Eduardo Vasconcellos - A opção ocorreu na década de 1930, quando os EUA começaram a se tornar uma referência mundial. A elite brasileira optou por um modelo rodoviarista, que levou à desativação paulatina do sistema ferroviário e à construção de uma grande rede de rodovias. A instalação da indústria automobilística na década de 1950 completou o conjunto de decisões estruturais. Àquela época não existia a preocupação com o espalhamento das cidades e a geração de congestionamentos, o que só veio a ocorrer nos EUA na década de 1950.
IHU On-Line – O que diferencia as opções do Brasil em relação a outros países da América Latina em termos de transporte público, como por exemplo, a implantação do metrô em Buenos Aires e Santiago?
Eduardo Vasconcellos - Não há muita diferença. A rigor, o sistema de transporte público no Brasil (provido por empresas controladas pelo governo) mostrou-se melhor que a maioria dos outros países, nos quais o transporte é feito por indivíduos ou cooperativas, com veículos de baixíssima qualidade. Grandes obras como o metrô (e os trans) de Buenos Aires são exceções.
IHU On-Line – Segundo o estudo da Associação Nacional de Transportes Públicos – ANTP, o Brasil gasta por ano R$ 184,3 bilhões em mobilidade. O que esse valor demonstra em relação aos investimentos em mobilidade urbana no país?
Eduardo Vasconcellos - Estes gastos correspondem à soma dos gastos das pessoas com os gastos do governo, sendo os primeiros muito maiores que os segundos. Os gastos do governo (10,1 bilhões) correspondem ao custo de manter o sistema viário operando, não incluindo os investimentos em novas vias ou infraestrutura (que não são conhecidos). O que chama a atenção é que os gastos públicos com o transporte público representam um terço do total, considerando que o transporte público atende número maior de viagens.
IHU On-Line – Em seu livro ‘Mobilidade urbana: o que você precisa saber’, o senhor menciona que muitos governos se tornaram reféns dos operadores de transporte e nem sempre têm liberdade de mudar os serviços prestados. Nesse sentido, quais são os principais problemas da relação entre os governos e as empresas prestadoras de serviços de transporte público?
Eduardo Vasconcellos - O sistema de regulamentação de transporte público no Brasil tem as vantagens de organizar serviços legalizados, em que os veículos são submetidos a requisitos de qualidade e os trabalhadores têm seus direitos respeitados (o que não ocorre, por exemplo, na maioria dos países latino-americanos). O problema está em que a rigidez dos contratos muitas vezes impede o governo de propor alterações relevantes para os usuários, pois isto acarretaria mais custos que não são cobertos pela tarifa.
IHU On-Line – Entre as pautas das manifestações de junho de 2013, estava a do valor do transporte público. É possível assegurar um transporte público barato e eficaz em termos de qualidade e serviço?
Eduardo Vasconcellos - É possível assegurar um transporte eficaz e de qualidade, mas não é possível fazer isto a baixo custo, pois a mobilização de infraestrutura, veículos e trabalhadores para o sistema de transporte não é barata.
IHU On-Line – Por quais razões o Brasil ainda direciona os investimentos em transporte para o transporte individual?
Eduardo Vasconcellos - Porque os segmentos políticos e econômicos que se beneficiam do sistema baseado no automóvel têm força política muito superior à dos usuários do transporte coletivo.
IHU On-Line – Quais são os principais problemas em torno da gestão do trânsito?
Eduardo Vasconcellos - Nas cidades congestionadas como São Paulo, o principal problema é dividir o espaço escasso entre todos que querem utilizá-lo simultaneamente.
IHU On-Line – Que mudanças na engenharia das cidades poderiam resolver problemas relacionados à mobilidade urbana, especialmente em regiões metropolitanas?
Eduardo Vasconcellos - Uma mudança muito importante seria a redistribuição de empregos e atividades de forma que as pessoas tivessem de percorrer distâncias menores que as atuais, economizando tempo, dinheiro e energia. Mas isto é um processo de longa maturação.
IHU On-Line – Percebe uma mudança cultural em direção a uma conscientização do uso do transporte público no país ou ainda não?
Eduardo Vasconcellos - Em áreas cronicamente congestionadas como São Paulo já ocorre esta conscientização, mas em outras cidades brasileiras a força do apoio do Estado ao automóvel e toda a ideologia que o segue ainda são muito mais fortes.
IHU On-Line – Que relações estabelece entre renda e mobilidade? Em que medida o aumento da renda conduz ao aumento da mobilidade?
Eduardo Vasconcellos - O aumento da renda sempre leva ao aumento da mobilidade, em todo o mundo. A diferença está em quais modos de transporte serão usados para fazer as viagens adicionais.
IHU On-Line – É possível estimar qual será o padrão de mobilidade no país em 2020 e 2030?
Eduardo Vasconcellos - Seguindo a tendência atual, aumentará o uso do automóvel e da motocicleta e diminuirá o uso do transporte público.

* Publicado originalmente no site IHU On-Line.