quarta-feira, 15 de junho de 2016

Linha de frente

15/06/2016 14:00 - ANTP


Bloomberg [prefeito de Nova York de 2002 a 2013] viu as bicicletas tomando Paris e quis levar para Nova York. Disseram que seria impossível. Sua secretária de Transportes [Janette Sadik-Khan], que é um fenômeno, espalhou ciclovias e faixas compartilhadas. Há um saber aí que viaja rápido. (Cidades são mais rápidas e encaram antes os problemas, diz socióloga holandesa Saskia Sassen - Folha de SP)

Nossas autoridades não usam transporte público. Esse é um fato inconteste, que contrasta com discursos e relatórios alardeando que nunca se fez tanto pelo setor nos últimos 516 anos. Esta situação não está ligada a partidos, menos ainda a ideologias, e se repete há muitos anos. Como o transporte público pode transformar seus usuários em ‘sujeitos urbanos’, onde se pode aprender a conviver com o diferente?
Para a socióloga holandesa Saskia Sassen, de passagem pelo Brasil, ‘as cidades estão na linha de frente da globalização e os prefeitos, independentemente do grau de autonomia e de orçamento que têm, encaram problemas antes do que os governos nacionais e são mais rápidos em agir’.
Os prefeitos, primeiros combatentes da administração pública, sofrem exatamente por sua posição ‘privilegiada’. São ao mesmo tempo revolucionários e vilões quando ousam trafegar pela tênue linha da inovação. E inovam, muitas vezes, por absoluta falta de alternativas, como na questão do uso do espaço público. Uma cidade inundada por carros, com pesadas consequências para a habitabilidade, coloca o prefeito diante de um dilema em que não lhe é dada sequer a opção da omissão. É preciso fazer alguma coisa para tornar a cidade mais sustentável, menos agressiva, minimizando no limite do possível os gargalos que a tornam menos produtiva. As pessoas precisam se locomover, sair de casa e chegar a seus destinos, condição mínima para que qualquer economia não entre em estado de choque.
‘Criar regiões que demandam transporte automotivo coloca um peso financeiro muito grande sobre os cidadãos; temos uma epidemia de obesidade nos EUA que causa várias doenças, pessoas que moram em áreas menos caminháveis têm o dobro de chance de ter sobrepeso do que aquelas de áreas caminháveis, além disso, acidentes de trânsito matam e ferem mais em cidades menos caminháveis; e quanto mais densa a cidade, menor –cerca de um quarto– é a emissão individual de carbono’. O urbanista americano Jeff Speck, autor do livro ‘Cidade Caminhável’, descreve assim a armadilha que muitas cidades brasileiras construíram para si, e de onde hoje descobrem-se incapazes de sair. O peso do carro tornou-se uma salgada conta que nos é imposta após décadas de um modelo urbano dirigido quase que unicamente para o transporte individual.
Como sair dessa prisão?
Se fossemos calcular o prejuízo para a economia ocasionado pelas más condições do transporte público, o aperto nos trens, as demoras nas viagens, sem contar o entorno de estações e abrigos, geralmente mal iluminados, com calçadas em péssimas condições, com policiamento inexistente e altos índices de criminalidade, chegaríamos a um número exorbitante.
O abismo entre o mundo de quem se utiliza de transporte público e ativo (caminhada, bicicleta e corrida) e o universo colorido e perfumado do usuário de automóvel é gigantesco. Para os primeiros, a resignação. Para os últimos (tratados sempre como os mais importantes, basta ligar a TV ou o rádio), a prioridade. O aperto nos ônibus e trens urbanos vira notícia no jornal da manhã, mas apenas pelo lado denuncista e apelativo. O resmungo solidário que se pode imaginar do outro lado da telinha da TV é ‘como esse povinho sofre...’. Eis o tratamento midiático: para o trabalhador espremido nos ônibus e trens, condolências. Para os automóveis presos no congestionamento, nossa solidariedade e campanha permanente para que se construam mais viadutos, se alarguem mais as ruas, e se afastem para bem longe as “interferências” à mobilidade do automóvel, eufemismo cínico para tratar pedestres, crianças, ciclistas e até ônibus.
Como a mensagem subliminar está no ar desde priscas eras, os ouvidos, corações e mentes se acostumaram com tais conceitos, aceitando como verdade eterna o que nem verdade um dia foi. Logo, é natural o carro ter prioridade. São argumentos que partem da sagrada premissa de que o automóvel, e quem o dirige, é mais importante para a economia que o trabalhador.
Muita coisa está mal posta e fora da ordem. E muitos prefeitos, postados na linha de frente e premidos pela dura realidade das ruas, já começam a se dar conta disso. É preciso salvar as cidades, o que implica em devolvê-las a seus cidadãos, permitindo que todos possam sair e chegar a seus destinos com mais conforto e em menos tempo, exatamente o oposto do que se tem hoje. E que possam fazê-lo caminhando em boas calçadas, pedalando em ciclovias, utilizando-se de corredores de ônibus sem interferências e de trens regulares com o máximo conforto. 
ANTP