segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Com 30 anos de existência, vale-transporte continua no centro dos debates sobre a questão das tarifas do transporte público no Brasil



Em dezembro de 2015, o vale-transporte completou trinta anos de existência e se mantém no centro do debate a respeito das tarifas do transporte público urbano. Trata-se de um instrumento que assegura que o trabalhador não pagará mais do que 6% do seu salário para ter o transporte até o local de trabalho e garante fatia respeitável da receita das operadoras de transporte em todo o País. Nos últimos anos, o vale-transporte passou a ser visto também como um caminho para reduzir o peso da tarifa para o usuário – concorrendo para a modicidade desse preço, conforme exige a Lei de Mobilidade Urbana (Lei nº 12.587/12) – e o ônus do subsídio para as municipalidades.O vale-transporte completou trinta anos em dezembro de 2015 e continua no centro do debate a respeito das tarifas do transporte público urbano. Trata-se de um instrumento que assegura que o trabalhador não pagará mais do que 6% do seu salário para ter o transporte até o local de trabalho e garante fatia segura e respeitável da receita das operadoras de transporte em todo o País.

Sobretudo após as manifestações de 2013, o vale-transporte passou a ser visto também como um caminho para a modicidade desse preço, conforme exige a Lei de Mobilidade Urbana (Lei nº 12.587/12) e conseqüentemente para reduzir o peso da tarifa para o e o ônus do subsídio para as municipalidades.
 


Na mais recente reunião do Fórum Nacional de Secretários de Mobilidade Urbana, realizada em dezembro de 2015, em Curitiba, o prefeito curitibano Gustavo Fruet e o secretário municipal de Governo, Ricardo McDonald Ghisi, trouxeram novamente à discussão a proposta de universalização do vale-transporte, datada de 2013. De acordo com essa proposta, todas as empresas e órgãos públicos repassariam, de forma obrigatória, diretamente para o sistema de transporte coletivo, o valor correspondente ao vale-transporte de todos os seus empregados, os quais ganhariam um cartão de transporte. Segundo os autores, a medida propiciará que apenas os turistas e usuários eventuais da cidade paguem a tarifa cheia, beneficiando toda a população com substancial desconto tarifário. Simulação referente à capital paranaense mostra que, com tal sistemática, a arrecadação seria suficiente para cobrir todos os custos do sistema; assim, os usuários pagariam bem menos e o Tesouro municipal seria desonerado.

Naquela mesma reunião do Fórum Nacional, o secretário paulistano de Transportes, Jilmar Tatto, disse ser favorável a que todos os empregadores paguem o vale-transporte, mesmo que seus empregados não usem o transporte público, pois os sistemas estão disponíveis e tiveram um custo de implantação e têm um custo para que sejam mantidos operacionais. No seu argumento, a existência do sistema universal e ininterrupto de deslocamento urbano favorece também às empresas de todos os setores, já que é utilizado por funcionários, fornecedores e clientes dessas empresas.
 
MODERNIZAÇÃO
 
A modernização do vale-transporte vem sendo perseguida há muito tempo. O principal projeto a esse respeito tem mais de dez anos e está pronto para ser votado no plenário da Câmara dos Deputados há pelo menos seis anos. Trata-se do Projeto de Lei nº 5393/2005, de autoria do ex-deputado federal Mário Negromonte. Em 2009, o autor protocolou requerimento de urgência urgentíssima para a matéria, mas o tempo passou e mesmo tendo ele exercido por alguns meses o cargo de ministro das Cidades a matéria não andou. Em 4 de fevereiro de 2016, seu filho, o deputado Mário Negromonte Júnior, requereu novamente a inclusão do texto na Ordem do Dia.
 


O projeto é considerado modernizador por proibir o empregador de substituir o fornecimento do vale-transporte por dinheiro e por tipificar como estelionato a fabricação, a venda, ou qualquer outro meio de fraude do vale-transporte. Ele também qualifica o vale-transporte como direito trabalhista e aumenta as sanções às empresas que não concederem o benefício em sua forma original, e concede ao órgão gestor responsável pela comercialização do vale-transporte poderes para denunciar ao Ministério do Trabalho as empresas que ajam irregularmente quanto a esse benefício.



Outra propositura – o Projeto de Lei do Senado (PLS) 242/2013 – altera o parágrafo único do artigo 4º da Lei nº 7.418, de 16 de dezembro de 1985, a fim de desonerar o trabalhador de qualquer participação no custo do vale-transporte, extinguindo o desconto de até 6% do salário para custeio do deslocamento de ida e volta para o trabalho por transporte coletivo. Ou seja, o projeto propõe que os empregadores passem a custear integralmente as despesas com o vale-transporte. O projeto tem sua ultima tramitação em 27/10/2015 na Comissão de Assuntos Econômicos. Na avaliação relator da matéria, senador Paulo Paim, transformado em lei, essa proposição vai contribuir para o aumento da renda dos trabalhadores, já que eles não terão mais participação no custeio do transporte para o deslocamento ao trabalho, uma medida ousada, porém necessária, para garantir aos trabalhadores do nosso país essa conquista.

IMPORTÂNCIA E SOBREVIVÊNCIA
 


Com três décadas de existência, pode-se dizer que o vale-transporte é um instrumento caracterizado pela importância em garantir recursos para deslocamento da população trabalhadora e também por ter conseguido sobreviver a um considerável número de tentativas de descaracterização e mesmo eliminação.



O vale-transporte foi criado por meio da nº Lei 7.416/85, passando a garantir que trabalhadores de menor poder aquisitivo pudessem ter acesso ao transporte público, mesmo diante da rapidez com que, na época, crescia a inflação. Foi também uma forma de promover a redistribuição de renda, uma vez que os trabalhadores que ganham menos, que chegavam a despender até 30% do salário com transporte, passaram a gastar apenas 6%.


Em sua primeira versão, o vale-transporte tinha como base a renúncia fiscal, já que as empresas que concediam o benefício abatiam do Imposto de Renda parte do que haviam pagado aos empregados; mais tarde, a Lei 9.532/1997 eliminou a possibilidade de as empresas compradoras de vale-transportes deduzirem parte desse valor no Imposto de Renda.


Um ponto que diversos analistas sublinham é o vale-transporte tem como característica ser um subsídio concedido diretamente ao trabalhador, e não às operadoras de transporte. De todo modo, ao beneficiar trabalhadores, o instrumento também acaba assegurando parte da receita das empresas de transporte urbano, contribuindo para o equilíbrio financeiro do setor.


Quando foi editada, a lei do vale-transporte determinava que o empregador poderia, a seu critério, antecipar o vale-transporte ao trabalhador depois de celebrado acordo coletivo ou convenção coletiva de trabalho. Dessa forma, havia um caráter facultativo, modificado por meio da Lei nº 7.619, de 30 de setembro de 1987, que tornou obrigatório aos empregadores custear o transporte residência-trabalho, e vice-versa, dos seus empregados. A mudança evitou desvio da finalidade e assegurou que a maioria dos trabalhadores passasse a utilizar o benefício para efetivamente pagar as viagens de ida e a volta ao local de trabalho.


Muitos analistas notam que, ao possibilitar o acesso ao transporte, o vale-transporte fez cair o absenteísmo decorrente da falta de recursos do trabalhador para seus deslocamentos e praticamente eliminou ocorrências como os ‘quebra-quebra’, que, nos anos 80, haviam se tornado rotina, sobretudo, nos momentos de reajustes tarifários não coincidentes com reajustes salariais num quadro de inflação intensa. De todo modo, é importante registrar que data desse período o crescimento dos movimentos sociais pela redução tarifária e melhoria da qualidade do serviço.


A paternidade da ideia que deu origem ao vale-transporte é atribuída à Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP). Rogerio Belda, que presidiu a ANTP, disse certa vez que o vale-transporte “é a forma imaginosa de subvencionar o transporte coletivo de trabalhadores de baixa remuneração, sem burocracia e sem dinheiro público”.


Muitos entendem também que o vale-transporte tem a vantagem de reduzir a conotação social do preço da tarifa, pois, uma vez que o trabalhador paga no máximo 6% do que ganha com transporte, o preço da tarifa exerce uma pressão menor sobre o seu orçamento, porém como a força de trabalho ainda é muito informal a pressão social continua.


ATAQUES AO BENEFÍCIO


São freqüentes as tentativas de ataque aos benefícios do vale-transporte – empreendidas por empresas e pelo próprio governo federal. Uma das alterações que acabaram enfraquecendo o vale-transporte foi o fim da possibilidade de as empresas abaterem os gastos com o benefício do Imposto de Renda, adotada por lei em 1997. No ano seguinte, em 1998, a Medida Provisória n° 1.783 (que viria a ser reeditada mais de 30 vezes nos anos seguintes) e o Decreto n° 2.880, que a regulamentou, extinguiram a obrigatoriedade da aquisição do vale-transporte para os servidores públicos federais, abrindo a possibilidade de que o valor do benefício fosse incorporado ao salário e fornecido em dinheiro, mesmo para os que não tinham direito de receber. Essa modificação foi chamada de ‘vale-gasolina’ por incentivar o uso dos automóveis.


Dentre as tentativas de alterar e descaracterizar o vale-transporte as mais insistentes correspondem justamente à proposta de transformação do benefício em um pagamento em dinheiro. Ao lado do MDT, a Frente Parlamentar do Transporte Público (FPTP), e organizações como a ANTP, o Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes de Mobilidade Urbana e a Frente Nacional de Prefeitos, além de sindicatos e centrais de trabalhadores e entidades empresariais do setor, várias vezes se manifestaram em conjunto contra o pagamento do vale-transporte em dinheiro.


O entendimento é de que o pagamento em dinheiro traz riscos. Um deles é o de que o trabalhador, ao receber o auxílio para o transporte em dinheiro, dirija esse recurso para suprir outras necessidades da família, como se fosse um aumento real de salário, ficando sem dinheiro para se deslocar ao trabalho. Outro ponto é o fato de se criar uma fraude legal, com o pagamento em dinheiro. Haveria dois efeitos ruins, para trabalhador: a redução da massa salarial e para o governo a evasão de recursos dos encargos trabalhistas. A possibilidade de contratar pessoas pelo mínimo e pagar a diferença do salário em ‘vale-transporte’.


Outro ponto nocivo é o estímulo ao uso do transporte individual motorizado - automóveis e motos -, com aumento de congestionamentos, demora nos deslocamentos e mais poluição. Além disso, é preciso considerar que a diminuição do número de passageiros nos ônibus, trens e metrôs desequilibraria as operadoras, dificultando os esforços para reduzir as tarifas, com o objetivo de promover a inclusão social nos grandes centros urbanos.


As organizações defensoras do vale-transporte têm se mantido alertas e se movem com agilidade, conseguindo deter tentativas de desfigurar o benefício no legislativo federal. Há exatamente dez anos, no primeiro semestre de 2006, houve nada menos do que quatro propostas legislativas – uma das quais era uma medida provisória patrocinada pelo governo federal – para transformar o pagamento do vale-transporte em dinheiro. Em setembro de 2009, aconteceu nova tentativa, também derrubada.


Em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu favoravelmente ao Unibanco ao julgar um recurso extraordinário referente a uma disputa contra o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) a respeito da legalidade da cobrança da contribuição previdenciária sobre o vale-transporte pago em dinheiro. O STF entendeu que o vale-transporte pode mesmo ser pago em dinheiro e não pode ser tributado, como queria o INSS e toda a comunidade de transporte, apesar dessa decisão do STF ter perdido força com embargos da Fetranspor.


Está também entre as agressões ao vale-transporte a ocorrência de fraudes, um problema contra o qual, segundo a entidade, o principal antídoto tem sido a bilhetagem eletrônica que cria obstáculos para o comércio ilegal do benefício.

boletim informativo movimentando - mdt
Número 116 - Fevereiro 2016 -   Matéria 01/7

Centros urbanos e o não transporte

31/01/2016 

Rafael Pereira e Renato Balbim
O princípio do "não transporte", além de propor o uso racional do solo urbano, visa combater a degradação das cidades e das relações sociais em função da priorização e do uso indiscriminado do transporte motorizado. No Brasil, organizações como a ANTP, alguns acadêmicos e formuladores de políticas são defensores deste princípio. Ademais, a sanção da Lei 10.048/2000 e do decreto 5.296/2004 constituem importantes avanços do marco legal da mobilidade urbana ao abordarem a questão da acessibilidade universal, incluindo a perspectiva das pessoas com dificuldades de locomoção e dos pedestres, valorizando modos não motorizados de mobilidade.
O uso indiscriminado do transporte motorizado individual gera graves impactos ambientais (poluições diversas, distorção na adaptação do uso do solo ao modo de transporte e não ao ser humano transportado), econômicos (deseconomias ligadas ao trânsito e aos congestionamentos) e sociais (individualismo, estresse, violência no trânsito, etc).
Nesse sentido, o "não transporte" não se restringe a uma bandeira de luta pela redução e racionalização do uso dos meios de transporte motorizados, mas, sobretudo, constitui tese ligada ao esforço de se refundar a ideia de cidade, reforçar sua escala humana na ótica do pedestre, dos deslocamentos possíveis de serem realizados por meio de caminhadas e das interações humanas no cotidiano.
Nos anos recentes, houve um aumento significativo do número de automóveis particulares que, em 10 anos passou de 24 milhões para 56 milhões de veículos (Denatran). Isso é resultado, dentre outros fatores, do aquecimento da economia, do aumento da taxa de empregos, do acesso ao crédito, de incentivos fiscais ao setor automobilístico, da precarização do transporte público, do crescente medo da violência urbana e de investimentos públicos prioritários no sistema viário.
A conjunção desses fatores reforça o colapso vivenciado nos sistemas de transporte e, por conseguinte, das próprias condições de habitabilidade das cidades brasileiras, situação demonstrada, pela pesquisa sobre as deseconomias do transporte urbano, realizada pelo Ipea, em parceria com a ANTP.
Pouco se diz, entretanto, dos custos relativos a cada modo de deslocamento e seus impactos na configuração das cidades, na organização do espaço, nas possibilidades ou restrições das interações sociais, na segregação socioespacial ou na fragmentação do território. Qual a efetiva repercussão da opção pelo transporte motorizado individual no território das cidades e em seu cotidiano? O percentual de área destinado ao sistema viário pode ser um exemplo de como se prioriza o meio de transporte e não seu usuário. Em São Paulo, esse valor pode ultrapassar os 40%.
As cidades têm nas centralidades urbanas o seu lócus privilegiado da mobilidade e do contato humano. Devido ao uso misto, que diferencia as áreas centrais dos bairros funcionais em seu entorno, bem como em decorrência de aspectos históricos e de identidade, os centros de cidades reúnem fluxos de diversas ordens, pessoas de todos os cantos da cidade, com diversas rendas etc.
Ao modelo de ocupação de áreas periféricas, condomínios fechados, loteamento irregulares, todos possibilitados pelo automóvel, soma-se o abandono das centralidades e de seus padrões de consumo e sociabilização ligados à lógica do espaço público, da rua, das calçadas, do pedestre.
Nesse contexto, o "não transporte" deve ser entendido também como política que busca o cumprimento da função social da propriedade e da cidade, especificamente o uso de imóveis vazios em áreas centrais. Segundo dados do Ministério das Cidades, no ano de 2007 existiam no Brasil 7 milhões de domicílios vagos em condições de uso, sendo 1,8 milhão localizados em áreas metropolitanas, números similares ao déficit habitacional total e ao déficit metropolitano. Na média 10% dos domicílios metropolitanos estão vazios, número que pode ultrapassar os 30% no centro do Rio de Janeiro e Recife.
A tese do "não transporte" colabora para repensar, portanto, o padrão de ocupação e aproveitamento do solo urbano. Segundo estudo de Luiz Kohara (USP), 50% dos moradores de cortiços no centro de São Paulo vão ao trabalho a pé. Do total de trabalhadores moradores de cortiços, 80% gastam menos de 30 minutos no deslocamento, não importando o modo utilizado. A moradia em cortiços constitui estratégia individual de sobrevivência e expressa a lógica de proximidade subjacente ao "não-transporte".
Ainda que políticas públicas em transporte e trânsito sejam essenciais, a adoção exclusiva desse tipo de medida não consegue ser suficiente para promover um padrão de mobilidade mais justo e eficiente. Torna-se necessário conjugar esforços, repensar o padrão de ocupação e aproveitamento do solo urbano por meio de incentivos fiscais e restrições urbanas que viabilizem e tornem rentáveis a reabilitação e destinação de imóveis vazios, que otimize o uso das infraestruturas já existentes e promova o adensamento, repovoando os centros e destinando a cidade para todos.

Renato Balbim foi coordenador do Programa de Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais do Ministério das Cidades (2005 a 2009) e atualmente é técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea
Rafael Pereira é técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea
Artigo originalmente publicado na Revista Desafios do Desenvolvimento, Publicação do Ipea, nº 10, 2013