terça-feira, 22 de março de 2016

ANTP: O rabo do cachorro

O rabo do cachorro

09/03/2016 11:00 - ANTP

Nunca se falou tanto em smart cities, as “cidades inteligentes”. Referem-se àqueles municípios que usam a tecnologia para facilitar a vida de seus habitantes, ao permitir que informações e serviços sejam compartilhados em tempo real e de forma automática com os órgãos públicos responsáveis pela gestão municipal. Exemplos disso podem ser vistos em semáforos controlados à distância, pontos de ônibus com painéis que apontam a estimativa de chegada dos ônibus, até, numa versão mais complexa, centro de operações que usam a tecnologia para identificar congestionamentos de trânsito e riscos de desastres naturais.

Num caderno especial do Estadão, publicado no início da semana, dois pesquisadores (Osvaldo Gogliano e Renata Marè) de engenharia de computação e sistemas digitais da USP chamam atenção para o fato do Brasil ainda estar bem longe do modelo ideal da cidade inteligente, exemplificada na matéria com o caso da cidade de Santander, na Espanha. “O grande equívoco é chamar de ‘cidade inteligente’ uma cidade que tem algumas ações inteligentes isoladas. Para ser considerada assim é necessário que essas ações sejam completamente integradas e com troca de informações, o que não ocorre hoje em nenhuma cidade brasileira”, enfatiza a pesquisadora Renata Marè.
O fato é que a terminologia “smart city” acabou sendo esvaziada de seu conteúdo e significado em detrimento do marketing. Como lembra a matéria do Estadão, “uma característica importante das cidades conectadas é o tratamento das informações. Não basta instalar câmeras e sensores. É necessário processar esses dados e conseguir interpretá-los”.
O que sugere, de saída, algo mais importante: é possível uma cidade inteligente sem um convencimento público de seus cidadãos? Um caso típico pode ser visto justamente na maior metrópole do país, São Paulo, onde medidas para aumentar o fluxo dos ônibus, permitindo assim maior velocidade comercial e menos tempo de viagem para a maioria das pessoas, são rechaçadas com manifestações raivosas de grupos que se sentem, até por longevidade, detentores do uso primordial das vias. Para estes, inteligente seria o uso da tecnologia para prioritariamente prover um escoamento do trânsito, permitindo um fluxo contínuo e benéfico aos usuários do automóvel. Qualquer ação “inteligente” para facilitar a vida do pedestre – aumentando o tempo semafórico de travessia, por exemplo – não seria aceita por esse raciocínio, já que contraditaria sua prioridade: tornar o uso do carro menos estressante como é hoje.
O grande problema dos gestores de transporte está justamente na conformação das cidades. Não é desejável que uma cidade se espalhe, apartando o emprego da moradia, já que tal situação torna complexo qualquer plano de operação, além de caro e dispendioso, afora a perda de qualidade carreada por consequências desagradáveis aos usuários, como o tempo perdido e a produtividade prejudicada. O inteligente, de acordo com urbanistas e especialistas em transportes, está em promover o adensamento populacional próximo de eixos de transporte público, além da redução da distância entre empregos e moradias.
Nem sempre o que é inteligente para a constituição de uma cidade é aceito por grupos que, mesmo minoritários, ocupam papel político decisório. Logo, tornar uma cidade inteligente depende inicialmente de perguntas fundamentais, que estão vinculadas diretamente ao projeto de cidade que se almeja. Cada cidade terá seguramente suas próprias respostas, o que dependerá não somente de sua vocação econômica, como do grau de participação de seus cidadãos.
Nesse debate sobre “smart cities” é comum o uso de exemplos e modelos desejáveis. Mas como lembra Julia Michaels, jornalista e responsável pelo blog Rio Real, Barcelona não é aqui. A tecnologia tem de ser posta à disposição de projetos urbanos que reflitam a melhor cidade para a maioria das pessoas. Para aqueles que garantem sua vida econômica, com o máximo possível de qualidade. Não o contrário.
Soluções inteligentes, que antecedem tecnologias sofisticadas, dependem naturalmente da inteligência não só dos gestores públicos, como principalmente dos cidadãos que dividem o uso dos espaços públicos. As traquitanas tecnológicas podem vender a sedutora ideia de modernidade, se mal definidas sua aplicação e prioridade. Acabarão por beneficiar um projeto enganoso de cidade, produzindo o efeito inverso ao que pretendido. Hoje não se não pode mais considerar “inteligente” o uso do transporte motorizado individual (leia-se carro), seja do ponto de vista econômico (custos), seja do ponto de vista ambiental (poluição, ruído, saúde).
O investimento extensivo em soluções que tornem as cidades mais inteligentes – e por conseguinte mais competitivas, ao reduzir seus custos e melhorar significativamente a qualidade de vida – depende inicialmente de uma aceitação tácita de que é necessário melhorar a cidade para todos, mesmo que para tanto seja preciso piorá-la para alguns. Esta decisão, geralmente o pomo da discórdia que atormenta todo gestor público, é hoje ponto de agenda prioritário em qualquer cidade brasileira. A tecnologia, afinal, é o rabo do cachorro.

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