segunda-feira, 25 de julho de 2016

Errar não é humano


13/07/2016 O Globo
O caminhão faz o retorno em uma rodovia duplicada e bem sinalizada da Flórida. Da direita, vem um automóvel que não diminui a velocidade. O choque é violento: o sedã perde a capota sob o chassi da carreta e, mesmo assim, continua andando por mais 400 metros até bater em um poste telefônico.
Foi assim que ocorreu, em 7 de maio, o primeiro acidente fatal com um veículo autônomo — ou, no caso, o semi-autônomo Tesla Model S. Em frente ao volante (mas não necessariamente no comando do carro) estava o ex-mariner Joshua Brown, de 45 anos, entusiasta da tecnologia. Segundo um relato do motorista do caminhão à Associated Press, Brown assistia um filme de Harry Potter no momento da batida (o DVD player continuou funcionando após o acidente).
O caso ainda está sendo investigado pelo NHTSA, órgão que cuida da segurança de trânsito nos Estados Unidos. A principal hipótese é de que dispositivo Autopilot, que dirigia o Tesla na hora da colisão, não conseguiu diferenciar a enorme carreta-baú branca do céu claro. Confundido, o computador não freou o carro, matando seu dono.
Desde então, pipocam na imprensa casos de pequenos acidentes envolvendo os Tesla S. Dispositivos de direção autônoma passaram a ser vistos como vilões.
Antes de comparar os carros autônomos a HAL 9000, o computador assassino do filme “2001 — uma odisseia no espaço”, vale conhecer algumas características técnicas e operacionais desses sistemas que, já na próxima década, farão parte de nossas vidas. Para começar, é importante saber que a corrida pelos carros autônomos tem se dado por dois caminhos: o da Google e o da Tesla. São filosofias e métodos bem distintos.
PARA A GOOGLE, O PROBLEMA SÃO AS PESSOAS
A Google aposta em veículos 100% autônomos, eliminando totalmente a necessidade de um motorista humano. A ideia é que o ocupante do veículo informe seu destino e, a partir daí, não tenha qualquer controle sobre a máquina, que assumirá todas as funções — os protótipos do Google Car não têm volante ou pedais.
A empresa aposta em inteligência artificial, que permitirá aos carros acumularem conhecimento trocando informações entre si. Além disso, os protótipos da Google usam o LIDAR (Light Detection And Ranging), espécie de radar sensível à luz, que usa laser para criar uma versão virtual em 3D do mundo à sua volta.
Capaz de se localizar com uma precisão de 10cm em um mapa pré-existente (e a Google tem sido boa na arte em mapear todas as ruas do planeta), o LIDAR é considerado a melhor tecnologia para carros autônomos. Seus inconvenientes são o preço, que passa de US$ 80 mil, e o funcionamento irregular em situações de chuva forte, neblina ou neve.
Por ora, a Google apenas testa seus carros. Seu objetivo é pôr os veículos 100% autônomos nas ruas em 2020 (se a legislação permitir) e, quem sabe, ter o monopólio na área, fornecendo seus dispositivos aos grandes fabricantes de veículos.
TESLA NÃO DISPENSOU O MOTORISTA
Para o visionário Elon Musk, dono da fábrica de automóveis elétricos Tesla, o futuro é aqui e agora. Para não perder tempo na busca de um carro 100% autônomo, passou a equipar seus carros, em outubro de 2015, com o Autopilot. Sozinho, o sistema tira o carro da garagem e, em rodovias, acelera, freia e faz curvas, mantendo o carro na faixa. Mesmo assumindo até 90% das funções da direção, é tratado como um auxiliar do motorista humano — este continua indispensável.
A inspiração veio dos pilotos automáticos usados na aviação, que fazem quase tudo durante o voo, mas dependem de um comandante de carne e osso. 
TESLA DESCARTA DESATIVAR SISTEMA DE PILOTO AUTOMÁTICO APÓS ACIDENTE
SÃO FRANCISCO - A fabricante americana de veículos elétricos Tesla anunciou nesta terça-feira que não prevê desativar seu sistema de condução automática, o 'Autopilot', objeto de uma investigação oficial das autoridades dos Estados Unidos após a morte de um homem que viajava com este sistema ativado.
O presidente da Tesla, Elon Musk, afirmou que os donos de carros elétricos de luxo precisam ser instruídos sobre como utilizá-los, em entrevista ao jornal americano Wall Street Journal.
— Muita gente não entende o que é nem como ativá-lo — disse o empresário.
Ele ressaltou que a empresa classificou a tecnologia como "beta", ou versão de teste avançada, para indicar que o sistema ainda não foi aperfeiçoado e que, portanto, o usuário "não deve ser complacente". Contatada pela AFP, a Tesla não quis comentar o assunto.
Em maio, um homem morreu na Flórida enquanto usava o 'Autopilot' no carro Model S da Tesla. Nem o motorista nem o sistema conseguiram detectar a manobra de um caminhão que cruzou com o veículo, de modo que os freios não foram acionados.
O sistema permite que o veículo mude automaticamente de pista, controle a velocidade e freie para evitar uma colisão. A função é ativada pelo motorista e pode ser anulada por ele.
Foi o primeiro acidente fatal após 210 milhões de quilômetros percorridos pelos Tesla com Autopilot
Como o uso do LIDAR ainda é proibitivamente caro, o Autopilot da Tesla partiu para uma solução alternativa: usar câmeras e um pequeno radar dianteiro. “Acho que é possível resolver tudo sem termos que apelar para o LIDAR. Não sou fã desse dispositivo e não acho que faça sentido no contexto atual”, disse Elon Musk numa conferência realizada em outubro.
Montada no retrovisor interno do automóvel, a câmera é produzida pela Mobileye. A partir de imagens em 2D, tenta “enxergar” o mundo em 3D.
Na ânsia de ser pioneiro, Musk passou a usar esse sistema nos sedãs Model S, em outubro do ano passado, transformando-os em carros semiautônomos.
O empresário decidiu liberar seu Autopilot ao público em “fase beta” de desenvolvimento. Ou seja: quando o software já é considerado completo mas ainda pode trazer bugs — são os usuários que ajudam a testá-lo.
Um desses consumidores-colaboradores era o finado Joshua Brown. Ele era um fã da Tesla (dizia que o Model S era o melhor carro que já tinha tido) e postava vídeos no Youtube mostrando as qualidades do carro — em abril, subiu imagens mostrando como o Autopilot evitou que seu carro fosse atingido após levar uma fechada de um caminhão.
AUTÔNOMO, ‘PERO NO MUCHO’
Quando um motorista ativa o Autopilot, uma tela no painel lembra: “este é um recurso auxiliar que requer manter as mãos no volante todo o tempo. Esteja preparado para assumir o controle a qualquer momento”. Outra mensagem diz: “você precisa manter o controle e a responsabilidade sobre seu veículo ao usá-lo”.
Além disso, o sistema também faz verificações frequentes para se assegurar de que as mãos do motorista permanecem no volante, e fornece alertas visuais e sonoros se isso não for detectado. Em seguida, gradualmente desacelera o carro até que as mãos sejam postas no volante novamente.
Mas quem consegue se manter alerta quando o carro está fazendo quase tudo sozinho? E quem resistirá a passar o tempo teclando com amigos ou vendo um filme (como parece ter sido o caso de Brown)?
Mesmo antes do acidente, pipocavam na internet videos como o que mostra o “motorista” dormindo ao volante enquanto seu Tesla se move só, no moroso para-e-anda de um engarrafamento.
Com acidentes ou não, os autônomos deverão, em poucos anos, tornar os carros comuns tão obsoletos quanto os cavalos. Dirigi-los, só longe de vias públicas e por lazer. Musk imagina que, em 20 ou 25 anos, a maior parte da frota mundial andará sozinha. E tal expansão se dará, justamente, por causa da segurança: estima-se que 94% dos acidentes fatais nos EUA ocorrem por falha humana (são 30 mil mortes por ano).
Segundo as estatísticas do NHTSA, uma pessoa morre a cada 150 milhões de quilômetros percorridos por veículos convencionais nos Estados Unidos. Segundo a Tesla, o acidente no dia 7 de maio foi a primeira fatalidade em 210 milhões de quilômetros percorridas com o Autopilot.
A julgar pela amostra, um carro ainda é mais seguro quando dirigido por uma máquina do que por humanos.

AUTOMÓVEIS DIRIGIDOS POR MOTORISTAS INVISÍVEIS
Carros autônomos parecem ser novidade, mas não é de agora que se fala neles. Em 21 de outubro de 1957, O GLOBO publicou o texto “Autómóveis e estradas do futuro”, que tratava da primeira demonstração do carro-conceito Firebird II, da General Motors, em uma autoestrada “construída nos moldes das highways a serem projetadas nos próximos anos”.
A nota explicava: “O veículo possui dispositivos eletrônicos que o fazem deslizar automaticamente sobre pistas especialmente preparadas. No caso de longas viagens, estes carros rodarão pelas estradas como aviões em voo autônomo e o motorista sentirá muito menos os efeitos da fadiga. O dispositivo eletrônico atua em relação a uma tinta especial, usada em uma faixa pintada ao centro da pavimentação. Com este dispositivo, o carro não se afastará da rota, manterá uma velocidade constante e diminuirá a marcha automaticamente, no caso de surgir um obstáculo à frente. Além disso será observada regular distância entre os carros, reduzindo-se, portanto, os riscos de colisão”.
Apesar de alguns testes práticos terem sido realizados, a eletrônica da época ainda era pesada e cara demais para que carros autônomos se tornassem realidade. Experiências do gênero continuariam a ser feitas nas décadas seguintes.
Em 26 de maio de 1972, uma reportagem previa: “No ano 2000, robô substituirá homem ao volante do automóvel”. Desta vez, destacava-se os estudos do Road Research Laboratory, laboratório de pesquisas rodoviárias da Grã-Bretanha, que tinha dois protótipos de autônomos em operação: um Mini e um Ford Cortina.
Na falta dos precisos GPS de hoje em dia, o sistema britânico também só funcionaria em estradas especiais, em que um cabo eletrônico seria instalado no meio de cada pista de rolamento, conduzindo corrente alternada. O campo magnético resultante induziria sinais em duas pequenas bobinas na frente do veículo. Tais sinais manteriam o carro na linha. Um motor elétrico movia o volante. Atuadores de eletrovácuo aceleravam e desaceleravam o motor, além de agir sobre os freios.
Por esse sistema, os veículos andariam em filas, automaticamente, nas rodovias. Para manter a distância um do outro, apostava-se no uso de um pequeno radar (exatamente como nos semi-autônomos de hoje).
E havia exercícios de pura futurologia, como se pode ler em um texto do arquiteto Moshe Safdie, publicado na edição de 6 de novembro de 1974. Ele previa para dali a 50 anos (ou seja: 2024), carros compartilhados e a permissão de uso de veículos autônomos “a qualquer cidadão com mais de 16 anos”. Os carros viajariam a 160km/h em rodovias com balizas eletrônicas para controlar a velocidade e evitar colisões. Quem viver, verá.