segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Não se iludam: não há solução na engenharia de tráfego para tantos automóveis em circulação, por Luiz Carlos Mantovani Néspoli

O que é um congestionamento? Na percepção popular, aliás, intuitiva, o trânsito está congestionado quando a velocidade é forçosamente baixa, os veículos estão muito próximos uns dos outros e pode acontecer de não se conseguir atravessar um cruzamento antes do sinal abrir pelo menos duas vezes.
Na linguagem técnica, trânsito congestionado significa nível F de serviço, índice que mede a densidade de ocupação (quantidade de veículos em circulação em um trecho da via). Nestas condições, a velocidade não chega a 25% da velocidade permitida para condições normais do tráfego. Os níveis de serviço vão de A (via totalmente livre) a (via congestionada), em que um nível D é razoavelmente confortável e o nível E é a capacidade da via.
O congestionamento pode ser eventual ou crônico. Eventual, quando algum acontecimento imprevisto ocorre, como um acidente, um carro quebrado ou um alagamento. Mas, mesmo assim, só se chegará ao nível de serviço se a obstrução da via for total ou se anteriormente ao evento ela já houvesse atingido um volume expressivo de veículos. São Paulo é um caso típico de cidade sujeita a situações eventuais, em razão do volume de tráfego nos horários de pico e da frequente proximidade da instabilidade.
Há trechos de vias, nas grandes cidades brasileiras, em que o congestionamento já é crônico, ou seja, tem hora e local para acontecer. A maioria delas tem um sistema viário radial concêntrico, com importantes eixos viários que se dirigem para a área central da cidade, onde se concentra o maior movimento. É nessas vias radiais, mas também nas que nela desembocam e nas outras poucas vias perimetrais, que a densidade de tráfego aumenta em determinados horários (pico) e o nível de serviço pode chegar ao nível E, e até mesmo ao nível F.
A maneira como São Paulo decidiu observar o impacto do congestionamento foi através da utilização de um indicador conhecido como "lentidão”, medido em quilômetros de ocupação da via. Para se calcular o indicador e se fazer comparações ao longo do tempo, elegeu-se um conjunto de vias sobre as quais são feitas medições. Resultados colhidos ao longo de anos indicam índices variando de 140 a 200 km de lentidão no pico do pico, podendo chegar a valores maiores sempre que uma alteração importante é adicionada ao tráfego cotidiano, como no último feriado de 15 de Novembro, em que o valor chegou à marca histórica de 309 km.
Nessas condições, há solução na engenharia de tráfego? Não se iludam, não há. Explico.
Mantendo-se o volume de automóveis na rua (o que deve crescer se a política de estímulo e incentivos continuar), a solução viria pela construção de novas vias ou do alargamento das atuais. Nenhuma dessas medidas é possível na cidade de São Paulo. A "lentidão” ocorre nos principais eixos viários, os quais são os mais adensados da cidade, o que implicaria em custos elevadíssimos (e proibitivos) de desapropriações, somados a custos elevados de construção (remoção de equipamentos em subsolo, drenagem, calçadas, pavimento, etc.), sem falar dos efeitos políticos negativos da medida.
Há quem ainda imagina melhorar a fluidez com a modernização do parque tecnológico dos equipamentos de controle semafórico. De fato, a implantação de sistema de semáforos inteligentes, controlando vários cruzamentos em malhas viárias cada vez mais extensas, permite um melhor escoamento de tráfego, e isso deve ser feito. Mas nas vias em que o nível de serviço (densidade de tráfego) encontra-se acima de certos limites, nos níveis E e F, a sincronização dos semáforos em cruzamentos pouca ajuda produz. Veja-se o caso das ondas verdes (semáforos que abrem progressivamente ao longo da via) e verifique se quando há congestionamento elas são de alguma utilidade.
Outra solução imaginada, e implantada em algumas vias, é o aumento do número de faixas de tráfego, à custa da redução da largura daqueles existentes, que ganhou o nome técnico de MUV – Máxima Utilização da Via. Isso foi feito em algumas avenidas, dentre as quais, na Avenida 23 de Maio, que passou de quatro para cinco faixas em alguns trechos. O resultado desta aplicação para a redução do congestionamento foi pífio. Nos dias seguintes ao da implantação, a faixa adicional já estava congestionada também. Há o exemplo também da ampliação das marginais do Rio Tietê, com o acréscimo de seis novas faixas, que se congestionam, ao lado das antigas, todas as manhãs e tardes.
Quando a sociedade está distraída, o aumento do número de faixas se dá pela redução da largura das calçadas, que já chegaram em alguns corredores a um metro de largura, e já se vê situações com apenas meio metro, como na Radial Leste. Isso, além de não resolver o congestionamento, vai contra a Lei da Mobilidade Urbana e aumenta o risco de atropelamento.
Um derradeiro recurso é o de criar rotas internas aos bairros, como se fossem "pontes de safena” para abrigar o tráfego excedente dos eixos viários principais, levando congestionamento, barulho e risco de atropelamento para áreas tipicamente residenciais. O congestionamento, a história tem demonstrado, se espalha a partir do corredor principal para as suas margens, à semelhança das enchentes que se dão às margens de rios e córregos durante grandes tempestades.
Em desnível, nem pensar. Soluções por vias elevadas têm altos custos e, sobretudo, provocam a deterioração nos bairros transpassados por estes mostrengos. Vias subterrâneas costumam ligar um congestionamento a outro, quando não geram seus próprios engarrafamentos.
Se há ainda quem sonha (ou imagina) que a solução para a mobilidade urbana será possível com mais esforço e investimento para comportar o volume crescente de tráfego de automóveis, pelas razões já expostas, pode ir tirando o cavalinho da chuva. Não há solução para a divisão modal como a existente hoje e insistir nessa direção, para não dizer o menos, é pura burrice, por mais influência que tenha a indústria automobilística sobre governos e mídia. O setor tem vendido carros como solução para o cidadão escapar dos sistemas precários de transporte coletivo e, sem cerimônia, quer chegar cada vez mais à classe C, por meio de redução de preços (a custa de redução de impostos) e do alargamento do crédito. Não tardará (e já há sinais disso, é só lembrar o índice de lentidão de mais de 300 km recentemente observado), e a classe C, ao lado das mais ricas, estará não apenas empenhando recursos financeiros que não possui, como estará perdendo o mesmo tempo que antes perdia no trânsito.
Se não há solução na engenharia de tráfego, de onde virá solução? Apenas, e tão somente, se houver uma nova divisão modal, ou seja, parte das viagens de automóveis migrarem para o transporte coletivo.
O sonho dourado da indústria automobilística, da classe média e da mídia é a construção de metrôs. Claro, eles andam por baixo da terra e não incomodam o trânsito de automóveis e, alem disso, são sistemas de transporte com qualidade ainda muito acima à dos ônibus. 
O metrô é indispensável, sim, em São Paulo e em outras cidades brasileiras, onde o volume de demanda é compatível com essa tecnologia e justifica os altos investimentos, mas desde que metrô e ônibus constituam uma rede estrutural integrada. Em qualquer hipótese, a demanda a ser transportada na superfície da cidade não deixará de prescindir de um sistema de ônibus de qualidade.
Não seria mais inteligente se a indústria automobilística apoiasse medidas de governo que geram mais recursos para o transporte coletivo? Ou ainda, investir diretamente na melhoria do transporte coletivo e continuar vendendo carros, que é um desejo legítimo das pessoas, mas com outro apelo de vendas? Seria... mas, em vez disso, lamentavelmente, preferem pressionar o governo para reduzir juros, enquanto a FIESP resolve bater, por exemplo, na revisão dos valores do IPTU, cujos recursos adicionais poderiam ser empregados na melhoria da mobilidade.
Cabe ainda questionar: não seria mais inteligente se a mídia incentivasse as medidas que estão dando prioridade aos ônibus e analisasse os problemas atuais como próprios de uma etapa de transição, absolutamente necessária, já que melhorias no transporte coletivo precisam de tempo? Seria... mas, cada vez mais, tratam as medidas implantadas em São Paulo como demagógicas.
Se perguntado a um motorista se ele migraria para o transporte coletivo, grande parte deles, como já indicaram várias pesquisas, diria que sim, caso houvesse melhoria nos ônibus. Mas, se perguntado a eles (pergunta que não foi feita) se abririam mão de uma faixa de tráfego para que a melhoria de fato ocorresse, certamente responderiam que não. Logo, assim como não se faz omelete sem quebrar ovos, cabe ao governo quebrar este círculo vicioso, o que vem sendo feito, sabendo-se que as medidas de melhoria devem ir muito além da reserva de espaço na via, única medida visível implantada até agora.
 Luiz Carlos Mantovani Néspoli (Branco) é superintendente da ANTP
Ponto de Vista, ANTP