quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Eduardo Vasconcellos lança livro que analisa os impactos do incentivo à motocicleta no Brasil

07/08/2016  - ANTP

Entrevista com Eduardo Vasconcelos





A decisão de fazer um relato detalhado do processo trágico da introdução da motocicleta no trânsito brasileiro veio não somente da intenção de estudar sociologicamente um grave problema relacionado à mobilidade e à vida das pessoas. Veio também da vontade de obter uma resposta para uma pergunta muito incômoda: por que uma sociedade se deixa ferir de uma forma tão estúpida, matando ou causando invalidez em quase dois milhões de pessoas? Nunca houve no Brasil um processo com um custo social tão alto em tão pouco tempo, porque a introdução do automóvel demorou muito mais para atingir uma quantidade elevada de vítimas. E nunca um processo tão destrutivo foi contado como “libertação dos pobres”, “desenvolvimento econômico” e “geração de emprego e renda”. É necessário contá-lo de outro ponto de vista, da destruição que causou na sociedade brasileira e que nenhum “ganho econômico” pode justificar. 
Agora que o processo já se consolidou e ainda vai gerar muitos impactos negativos a pergunta natural é “por que falar nisto”? É importante deixar um testemunho do que ocorreu, que tenha algum poder de persuasão e esclarecimento em meio a tanto populismo, desinformação e insensatez. Adicionalmente, isto é muito importante porque desde 2013 estão sendo desenvolvidas e propagandeadas motos menores (para adolescentes) e bicicletas elétricas de duas rodas, algumas com potência similar à de pequenas motos, e dirigidas ao público infanto-juvenil. Mais uma vez, tudo está sendo feito em nome da “inclusão social” e do “progresso”, ignorando os graves impactos que certamente ocorrerão se mais esta decisão for feita na mesma forma irresponsável da liberação e do incentivo à motocicleta no Brasil. (Eduardo Vasconcellos)
Eduardo Vasconcellos acaba de lançar o livro "Risco no trânsito, omissão e calamidade - impactos do incentivo à motocicleta no Brasil". O texto acima, publicado na orelha do livro editado pela Anna Blume, resume com crueza o que mais incomoda o autor, um estudioso do tema há vários anos. Ao final da introdução, ele emenda: "Este livro analisa o que aconteceu e tenta responder à pergunta: por que uma sociedade se deixa ferir desta forma?"  
A ANTP entrevistou o autor sobre a obra obra:
ANTP = No Brasil o tema do desenvolvimento econômico parece ter prevalecido como um fim em si mesmo, sem a devida preocupação com as consequências urbanas e sociais. O apoio quase obsessivo de várias instâncias de governo, em várias épocas e de diferentes partidos à indústria automobilística é um exemplo. O caso da motocicleta pode ser incluído nesse cenário?
Eduardo = O caso da motocicleta é diferente na escala dos negócios envolvidos e no montante de recursos gerados para o governo. O faturamento da indústria de motocicleta é muito menor do que o da indústria de automóvel, assim como a quantidade de empregos envolvidos e de impostos recolhidos. Da mesma forma, a indústria de motos não tem o impacto tecnológico em cadeia que a indústria de autos pode ter. Acredito que neste caso o grande apoio oferecido esteve ligado a uma visão populista e oportunista, de prover uma forma motorizada de transporte que fosse mais barata que o automóvel.
ANTP = O aumento da frota de motocicletas no Brasil, como você aponta em seu livro, é um fenômeno impressionante: de 1,5 milhões em 1990 para 17 milhões em 2012. Você pode explicar o motivo de tamanho sucesso comercial? Foi obra de estímulo ou foi mais omissão dos organismos de governo?
Eduardo = Foi obra dos subsídios dados à indústria de motocicletas, da liberação da compra em longo prazo com prestações baixas e da conveniência que a moto tem para o uso pessoal cotidiano. Acredito também que a precariedade da fiscalização tenha interferido: em algumas áreas do Brasil mais da metade dos motociclistas não tem carteira de habilitação e não usa equipamentos de segurança.
ANTP = Parece evidente que o fenômeno da explosão da motocicleta no Brasil pode ser vinculado à sua inserção nas faixas de renda mais baixas. Qual fator seria preponderante: a moto como instrumento de trabalho ou como transporte, em substituição aos ônibus e trens?
Eduardo = No início a moto penetrou no mercado de entregas de mercadorias nas cidades, feitas por jovens de baixa escolarização e sem opção de trabalho. Em seguida, penetrou no grupo da classe média baixa, como forma de deslocamento familiar (saindo do transporte coletivo) ou de apoio a atividades informais de comércio e serviços. Mais recentemente, entrou no grupo da classe média com escolarização mais alta, principalmente para acesso a escolas, ao trabalho e ao comércio.
ANTP = Ambientes de crise muitas vezes trazem, mesmo que indiretamente, benefícios à sociedade, como é o caso da redução do tráfico de automóveis produzindo menos gases do efeito estufa. Mas no caso de um veículo ágil e barato como a motocicleta, seu uso como instrumento de trabalho não tende a aumentar perigosamente, como parece demonstrar o surgimento de moto-táxis em cidades que sempre resistiram a essa modalidade de transporte? Tem-se casos em que este serviço ocorre de maneira clandestina, como em Manaus.
Eduardo = Sem dúvida a motocicleta tem características que a tornam muito atraente para atividades pessoais – baixo custo de aquisição e operação, conveniência, rapidez e facilidade de estacionamento. Não demorou muito para que se tornasse atraente para transportar passageiros mediante cobrança, como é o caso do moto-táxi. O problema é que o passageiro passa a correr um grande risco também, nas condições do trânsito no Brasil.
ANTP = Você questiona em seu livro a maneira omissa como o país reagiu (e reage) ao alto custo social causado pela explosão das motocicletas: 2 milhões de mortos ou inválidos. Você pergunta: como uma sociedade se deixa ferir desta forma? O livro, na verdade, tenta buscar respostas a essa incômoda pergunta, o que não é nada simples. Você poderia nos dar uma idéia de suas principais conclusões?
Eduardo = Este processo trágico ocorreu, primeiramente, pela postura populista do governo e de grupos políticos específicos; em segundo lugar, pela atitude irresponsável da indústria, que não revelou os verdadeiros riscos envolvidos no uso da motocicleta e segue repetindo o mantra falacioso de que “fazemos um veículo seguro, o problema está em outro lugar”. A falácia se explica pelo conceito enganoso de “segurança”: a indústria fala como se a motocicleta fosse ser usada no quintal das pessoas, em ambiente controlado; mas ela é usada obrigatoriamente em um ambiente público de trânsito, entrando em conflito direto com outros veículos e em situação de desvantagem, e ela nada oferece como proteção aos seus usuários. Em terceiro lugar, não houve uma preparação adequada nem dos usuários das motocicletas, nem dos demais condutores de veículos, dos pedestres e dos ciclistas, para participarem do convívio em um novo ambiente de trânsito. Por exemplo, os pedestres não foram informados da agilidade da motocicleta e da possibilidade de serem atropelados subitamente e os motoristas de grandes veículos simplesmente não conseguem ver os motociclistas que se aproximam e freqüentemente os atropelam sem perceber. A larga experiência internacional, que aponta a motocicleta como o veículo mais perigoso, foi ignorada. Em vez de verificarmos o que ocorreu em outras sociedades – um grande crescimento de mortos e feridos antes que o processo fosse melhor controlado (a famigerada “curva do aprendizado”) – simplesmente jogamos as motocicletas dentro de um trânsito dominado por veículos grandes e causamos esta tragédia social. E ainda por cima são mencionadas a “libertação dos pobres” e a “geração de empregos” como grandes benefícios. Não há benéfico econômico que compense a tragédia social fabricada.
ANTP = A motocicleta no Brasil atingiu o perigoso estágio do fato consumado. O que é possível fazer – se é possível – para diminuir seus altos custos sociais? Você acredita ser possível?
Eduardo = A experiência internacional mostra que a motocicleta é o veículo mais perigoso para o usuário. Isto é fácil de entender, considerando que o condutor e o passageiro não têm proteção contra colisões e outros acidentes. Em países que aplicaram políticas de segurança viária continuadamente, como no caso da Europa, os índices de acidentes caíram para todos os modos de transporte, à exceção da motocicleta. Isto mostra que é muito difícil controlar a insegurança inerente a este veículo. No entanto, as qualidades da motocicleta como veículo – conveniência, baixo custo e estacionamento fácil – a tornam atraente para muitos usos, desde que ela circule em velocidades moderadas e longe de veículos grandes. Um caso típico é o do transporte em áreas residenciais de topografia acidentada, com sistema viário precário e estreito, onde a circulação das motocicletas pode ser segura e muito útil à população. Mas se quisermos continuar a usar a motocicleta intensamente a sua posição no ambiente de trânsito precisa ser totalmente revista.
Entrevista realizada por Alexandre Pelegi, editor da Revista dos Transportes Públicos

Sobre o autor - Eduardo Alcântara de Vasconcellos é engenheiro civil e sociólogo, com doutoramento em Políticas Públicas (USP) e pós doutoramento em planejamento de transportes na Cornell University (EUA). Trabalha há 40 anos na área do transporte urbano. É assessor para assuntos de mobilidade urbana da ANTP - Associação Nacional dos Transportes Públicos e da CAF - Banco de Desarrollo na América Latina. Tem vários livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.
Sobre o livro:
Risco no trânsito, omissão e calamidade: impactos do incentivo à motocleta no Brasil
Eduardo A. Vasconcellos
Formato 14x21 cm 
137 páginas
ISBN: 978-85-391-0787-2