quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Novos caminhos para a cidade, na Revista Super Interessante, edição de Aniversário, edição 322 – agosto 2013)


Gostaria de começar esse texto dizendo que nenhuma outra área política estabelece seus preços de maneira tão irracional, ultrapassada e desperdiça tanto dinheiro quanto a mobilidade urbana". A frase é de um artigo de 1963, escrito pelo Nobel da Economia William Vickrey, sobre a realidade da América do Norte e da Europa. Mas era o prenúncio de um colapso que se repetiria 50 anos depois aqui no Brasil. Qualquer um que tente se locomover por uma grande cidade do país sente na pele a irracionalidade mencionada pelo engenheiro. Não foi por acaso que as manifestações que tomaram as ruas do país em junho começaram com o aumento (cancelado) das tarifas de ônibus em São Paulo, onde os congestionamentos só pioram. É hora de aproveitar o clima de alarme para melhorar o transporte das nossas metrópoles. A grande questão é "como resolver o trânsito?”.
"Antes de pensar em soluções, é preciso diagnosticar esse problema com precisão”, diz o planejador urbano Jeff Risom, coordenador dos projetos de mobilidade do Gehl Architects, na Dinamarca. Esse diagnóstico pode nos livrar de armadilhas, como achar que a maioria das pessoas que se locomove pelas cidades está dentro dos carros. Na verdade, 30,9% dos deslocamentos no país são feitos de carro, 28,9% de transporte público e 40,2% de meios não motorizados (bicicleta e a pé). lsso mesmo: a maioria está caminhando ou pedalando. Mas não é isso que refletem os investimentos em mobilidade.
De acordo com dados da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), em 2011, o orçamento estatal aplicado aos transportes públicos somou R$ 900 milhões, enquanto os investimentos em mobilidade para os carros chegaram em R$ 12,6 bilhões. Ou seja, investe-se dez vezes mais dinheiro público em infraestrutura para os carros, que transportam a minoria das pessoas. Gastos com vias para ciclistas e pedestres nem são mencionados no relatório, de tão insignificantes. "O investimento em ruas e avenidas para carros gera mais veículos e mais transito”, diz o consultor de mobilidade Mário Garcia.
O investimento em transporte individual também aumenta a poluição e os acidentes, fatores que custam dinheiro, mas não diretamente. São as chamadas externalidades. Em uma medição da ANTP, a poluição e os acidentes gerados pelas viagens de carro custam, por ano, R$ 17,2 bilhões, enquanto as feitas com transporte público saem por R$ 4 bilhões. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas tentou acrescentar mais variáveis à conta, como o combustível queimado enquanto os veículos estão parados, tempo ocioso perdido no congestionamento etc, e concluiu que o trânsito representa um prejuízo de R$ 40 bilhões por ano ao Brasil.
A má gestão dos transportes é, portanto, um problema não só de mobilidade, mas econômico e de saúde pública também. Vickrey, lá nos anos 1960, tinha razão: jogamos dinheiro fora e fica cada vez mais difícil sair do lugar. Mas há uma porção de iniciativas pelo mundo que pode nos inspirar a seguir novos caminhos.
Mais equilíbrio
"Não são só 20 centavos” foi uma bandeira adotada por boa parte dos manifestantes que eram contrários ao aumento da tarifa de ônibus. O superintendente da ANTP Luiz Mantovani Néspoli parece concordar com essa maneira de ver as coisas. "Mais do que reduzir a tarifa, o que precisa baixar e o custo da mobilidade. Para fazer isso e preciso equilibrar as vias das cidades”, defende.
A primeira parte desse equilíbrio está nos investimentos públicos. "A mobilidade é uma questão politica. Os aspectos técnicos são relativamente fáceis de resolver, difícil é decidir quem será beneficiado”, diz o ex-prefeito de Bogotá e consultor do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP, na sigla em inglês) Enrique Peñalosa. A revolução que ele causou na mobilidade da capital colombiana e a extensão prática de suas palavras. Em sua gestão, ele investiu em um sistema inteligente de ônibus inspirado no de Curitiba (que depois ficou conhecido como BRT), com faixas exclusivas e estações com plataformas de embarque que otimizam a entrada e saída de passageiros no veiculo. Para estabelecer as rotas desse sistema, que foi batizado de Transmilênio, Peñalosa foi na raiz do problema: removeu faixas de circulação de carros. Ele também construiu mais de 300 km de ciclovias e criou rotas de lazer em avenidas que, aos domingos, eram desativadas para os carros.
Para reequilibrar essa conta, é preciso ter uma visão sistêmica dos transportes. "A mobilidade precisa ser pensada como uma rede integrada de opções para atender as diferentes demandas das pessoas", diz Jeff Risom. Não e o que acontece no Brasil, onde os Órgãos que regulam a mobilidade não se articulam. O consultor Mário Garcia aponta que gestores de metrô, trem, sistema de ônibus e vias para carros não conseguem se planejar em conjunto porque são geridos de maneira separada.
Um exemplo a ser seguido é o Transport for London (TFL), departamento criado pela prefeitura da capital inglesa para coordenar o planejamento de infraestrutura e logística da cidade. Todos os tipos de deslocamentos – a pé, de bicicleta, de transporte público e de carro – são pensados pelo mesmo núcleo, que trabalha com uma diretriz simples: garantir o bem estar das pessoas. Assim, as infraestruturas para cada tipo de modal vão sendo pensadas de maneira integrada. "Se não for assim, carros, ônibus, ciclistas e pedestres vão brigar por espaço, em vez de compartilha-lo”, diz Risom.
Planejamento integrado
"O reequilíbrio das vias e opções de transporte precisa ser estrategicamente pensado com outra questão critica da mobilidade: a deformação da cidade”, diz Garcia. Ele explica o fenômeno comum nas metrópoles brasileiras: concentração de empregos no centro e de residências nas periferias. "Parte da solução da mobilidade está em reduzir sua demanda, permitindo que as pessoas morem perto do seu trabalho.”
O problema é que transportes e habitação são duas secretarias com gestões separadas em todas as cidades do país, o que dificulta sua ação de maneira planejada e integrada. A solução para isso, em Copenhague, foi criar um Órgão integrado na prefeitura, o Departamento de Vida Urbana. Qualquer projeto para a cidade, da construção de um conjunto de apartamentos a uma ciclovia, passa por esse departamento, que tem o poder de aprova-lo ou propor mudanças. O critério é simples: qualquer novidade precisa deixar um legado positivo na cidade, melhorando a relação das pessoas com seus espaços públicos.
Outro departamento similar e o Instituto de Sustentabilidade de Portland. Criado pela prefeitura, ele possui sedes em vários bairros da cidade e tem como objetivo promover conexões entre a sociedade civil, o poder público, a iniciativa privada e a academia. Um exemplo de sua atuação foi a criação de Luna ciclovia à beira do rio Williamette, que corta a cidade: um desejo da população financiado quase integralmente pela iniciativa privada e planejado com a ajuda da universidade local.
Com essa deformação corrigida, seria viável aplicar a regra de ouro da economia dos transportes, desenvolvida por William Vickrey, o economista lá do começo desta reportagem: cada pessoa deve arcar com os custos sociais dos seus deslocamentos. E os motoristas de carro precisam arcar com as externalidades de poluição e congestionamento que geram, a exemplo do Pedágio Urbano, adotado em Londres. Aí sim a mobilidade brasileira trocaria seu ciclo vicioso por um virtuoso. E teria espaço para se reinventar.
Um espaço, várias funções
"O principal erro cometido no planejamento das cidades e pensar demais no hardware e pouco no software " , diz David Sim, do Gehl Architects. Em outras palavras: uma avenida feita apenas para a circulação de carros é como se fosse um Ipad de última geração com apenas um aplicativo rodando. Mas quanto mais aplicativos (de qualidade), mais interessante seu uso. Uma avenida que não tem tanto movimento aos fins de semana é como o iPad de um aplicativo só, mas pode se converter em via de lazer. Uma praça pode receber uma feira durante o dia e um show à noite. Uma avenida a beira do rio pode virar espaço para as pessoas durante o verão e assim por diante. "Melhorar os usos da cidade reduz, também, a demanda por deslocamento.”
Projetos de agricultura urbana também têm esse resultado. Segundo Robert Biel, especialista no tema da University College of London (Inglaterra), plantar na cidade é uma boa maneira de reduzir o impacto do transporte de alimentos para consumo nos grandes centros urbanos. Aqui no Brasil, isso normalmente é feito por caminhões que lotam os acessos as cidades. Em Acra, Ghana, 80% do abastecimento de legumes e verduras e feito por um cinturão verde que circunda a própria cidade. "As pessoas consomem alimentos de mais qualidade e a cidade não fica congestionada por caminhões”, defende Biel. "Sem contar que hortas urbanas também são espaços de convívio entre as pessoas”, completa.
Reinventar lógica de trabalho também ajuda a reinventar a mobilidade. O projeto Working4Utah, adotado no estado americano de Utah, reorganizou a jornada semanal de 40 horas em quatro dias de trabalho. As pessoas ganharam um feriadão por semana – 80% da população aprovou a ideia. E o total percorrido por carros a cada ano no Estado foi reduzido em 5 milhões de quilômetros, gerando uma economia de R$ 3 milhões anuais.
Nenhuma das ideias para você nestas páginas é teórica ou utópica. Todas foram aplicadas em cidades pelo mundo, com resultados concretos e positivos. "E provavelmente sairiam bem mais baratas ao governo brasileiro do que os atuais investimentos que fazem em vias para carros", garante o urbanista Risom. São caminhos novos, que podem ser percorridos para reinventar as cidades. Quem ganharia com essas novas rotas seriam as pessoas.