segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O “Trem Pequi"

Artigo de Antenor Pinheiro  no Semanal da ANTP reflete sobre as nuances culturais e econômicas da implantação de um ramal ferroviário entre Goiânia e Brasília e o predomínio do transporte individual motorizado.

O tímido renascimento do desejo de se implantar uma linha ferroviária de média velocidade entre Goiânia e Brasília, bucolicamente denominada “trem pequi”, merece aplauso em sua intenção, mas recomendações aos gestos que doravante serão necessários à materialização da idéia.

A primeira questão que se apresenta para ser superada é de ordem econômica, pois qualquer proposta de infraestrutura ferroviária atrai automática resistência do poderoso setor industrial automobilístico e seus derivados (autopeças, borracha, vidros, lubrificantes, combustíveis, betumes, minérios etc). Basta recorrermos à história, especialmente a partir de 1950, e verificar que foi este o setor que mereceu incentivos prioritários no pós-guerra para que fosse consolidado como base do novo modelo econômico brasileiro, até hoje predominante como opção nas políticas de transportes brasileiras.

Este molde de gestão, desde então adotado como indutor do desenvolvimento econômico brasileiro, resultou dois vetores diametralmente opostos, hoje consolidados e em contínua progressão. De um lado incrementou magnificamente o sistema rodoviário brasileiro, que passou de aproximadamente 38 mil (1950) para 1,6 milhões de quilômetros de extensão (2000). Na outra ponta, a mesma política desestimulou o sistema ferroviário, que regrediu de 35 mil (1945) para 29,7 mil quilômetros de extensão em rede (2000), conforme anota Juciara Rodrigues em seu “500 Anos de Trânsito no Brasil” - praticamente a mesma quilometragem ferroviária do Japão que, além de ser 23 vezes menor que o Brasil, possui topografia adversa, montanhosa em 71% de seu território.

A segunda questão que se nos apresenta tem nuança cultural. No Brasil, transporte sobre trilhos é pouco aceitável porque remete à idéia de velocidade moderada, custos vultosos, estética proletária, ambiente rural, filmes “western” e cheiro de carvão, tipo coisa ultrapassada. Trata-se de inculcação ideológica competentemente construída pelo marketing da indústria sobre rodas, cuja ação inicial se notabilizou com a deliberada destruição dos sistemas de bondes urbanos de São Paulo e Rio de Janeiro, culminando com o sucateamento da indústria de vagões e locomotivas e a privatização de seus setores estatais.

Essa aparente obsolescência muda um pouco na medida em que se popularizam as novas tecnologias de transportes sobre trilhos, sobretudo os europeus e asiáticos - o “trem-bala”, o “shinkansen” japonês e outros sofisticados de altas e médias velocidades e “designers” arrojados. De fato, esses modernos modais nos permitem retomar a simpatia pelo sistema, cuja eficiência já é experimentada há muito nos ambientes urbanos metroviários existentes nas grandes cidades brasileiras e hoje se reflete no avanço da construção da Ferrovia Norte-Sul e seus ramais.

Portanto, o novo burburinho do “trem pequi” surge nesse contexto fático, num país que continua priorizando o transporte rodoviário, sobretudo o individual motorizado, com sucessivas isenções tributárias, e com menos trilhos hoje que 50 anos atrás. A isso se agregam as demandas acumuladas dos transportes sobre rodas, espelhadas nas rodovias mal conservadas, nos altos custos sociais traduzidos na expressiva acidentalidade viária, mas também na capital do Estado, cujas políticas de mobilidade carecem de profissionalização continuada. Bastante típico de uma passagem de nível sem barreira no momento em que a locomotiva se aproxima.


Antenor Pinheiro é jornalista, coordenador da ANTP Regional Centro-Oeste e superintendente da Secretaria de Estado das Cidades/GO