segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O Brasil e a indústria automotiva

Arte: Nazareno Affonso

AE - ROBERTO MARX E MAURO ZILBOVICIUS - AE
Encerrada a primeira década do século 21, a indústria automotiva se encontra numa encruzilhada: o automóvel está em questão como objeto produtor de poluição, como meio de transporte causador de congestionamentos nos grandes centros urbanos e como artefato associado ao individualismo e a outras causas antissociais.
De fato, o automóvel ainda é o grande consumidor de combustível não renovável nos dias de hoje. Em razão disso, o século 21 pode marcar o fim de um determinado modelo de mobilidade, de negócios e de organização da produção, mas também pode apontar novos caminhos para essa indústria - o que significa oportunidades de novos negócios e necessidades inéditas de regulação.
A pressão social e legal por menores índices de emissão de gases causadores do efeito estufa e por processos de reciclagem eficientes colocou na agenda a necessidade de desenvolvimento de novas formas de motorização. Por isso está em curso um processo sem precedentes de introdução de novas tecnologias que podem transformar profundamente a dinâmica do setor: caso a motorização elétrica ganhe espaço significativo, as bases da indústria podem mudar, colocando pressão e aumentando o risco de sobrevivência para empresas, negócios e instituições tradicionais do setor. Tanto as fábricas quanto os sistemas de geração e abastecimento de energia podem mudar, tornando obsoletos muitos dos investimentos já realizados.
Mas este processo não afeta somente a engenharia do ponto de vista do desenvolvimento de motores e materiais. Grandes cidades dos países em desenvolvimento se encontram próximas do caos, do ponto de vista da mobilidade urbana. Coincidentemente, é nesses países que a indústria automotiva tem crescido.
A questão da mobilidade não será resolvida somente com carros ambientalmente corretos, mas com políticas adequadas para nortear, integrar e incentivar outros meios de locomoção. Há um novo paradigma tecnológico e de mobilidade em gestação. Ele conviverá com o anterior durante longo tempo, e isso traz desafios para cada um dos agentes no arranjo atual de negócios e de influência no setor - consumidores, empresas, governo, entidades de formação de pessoas, órgãos reguladores e certificadores. É fundamental uma abordagem integrada e negociada para (re)definir o conceito do produto, os materiais, a motorização e as condições de seu uso.
No Brasil serão produzidos mais de 3 milhões de veículos em 2010. Mais renda, crédito, capacidade de produção, estabilidade social, entre os fatores principais, levam à expectativa de que antes de 2025 esse volume seja dobrado. Mas há escolhas estratégicas a serem feitas no que diz respeito ao tipo e ao conteúdo do produto que se irá produzir no Brasil. Respostas a estas questões são bem menos consensuais:
Qual será o conceito dos produtos aqui montados? Até que ponto esses produtos acompanharão as tendências tecnológicas mais recentes da indústria nos países desenvolvidos? Será o Brasil um polo de projetos e fábricas de produtos "antigos", ambientalmente "sujos", para gerar excedente que financie uma indústria da mobilidade limpa nos países centrais? Embora atentas às outras possibilidades de produtos, motorização e novos materiais, as montadoras atuais tendem a defender a tecnologia atual; sua liderança se dá num mercado construído sobre o paradigma anterior. Posições mais arrojadas tendem a ser exploradas por novos entrantes que, sem comprometimento com o passado, vislumbram novas oportunidades de negócios. De qualquer forma, o Brasil não pode ficar à margem dos avanços tecnológicos que começam a reconfigurar o setor desde já.
Há oportunidades para uma inserção diferenciada de novos negócios/empresas criados no Brasil, no contexto dos desafios mencionados? Empresas brasileiras são líderes globais em setores como o aeronáutico, de energia, entre outros. Este é também o único país que não dispõe de montadoras de veículos de capital nacional dentre os que possuem competências consolidadas em projeto de produtos e de produção. Competência tecnológica não parece ser obstáculo; há demanda e base produtiva para sustentar a produção e o consumo de produtos e serviços.
Embora o chamado "apagão" de engenheiros também afete o setor automotivo, é inegável que a competência da engenharia automotiva nacional é flagrante e supera a de todos os demais países em desenvolvimento e, certamente, a de todos os demais que não têm montadoras de capital majoritariamente nacional. Consolidar e ampliar essa competência a partir de uma estratégia de produtos e mercados que não seja definida unicamente pelas empresas é uma tarefa inadiável.
Num setor maduro e estável não cabe investir em grandes empreendimentos. Mas esse não parece ser o caso do setor automotivo. Justamente por conta da transição, que pode levar à ruptura do padrão tecnológico, cresce a possibilidade (necessidade?) de pensar a criação de empresas brasileiras que liderem cadeias de produção voltadas para a exploração de nichos de mercado globais.
As soluções técnicas, sociais e políticas capazes de superar a "crise" do automóvel e do seu uso ainda não estão definidas. A capacidade de compreensão em profundidade das mudanças em curso levará os variados atores da sociedade a interferir nesse resultado. Por isso investidores, governo, instituições de pesquisa e profissionais precisam avaliar, integradamente, os cenários futuros e assumir posições.
Cem anos depois do seu nascimento, uma nova indústria da mobilidade se avizinha. É necessário começar a vislumbrar e desenhar o futuro do Brasil neste novo cenário.
PROFESSORES DA FUNDAÇÃO VANZOLINI, ENTIDADE GERIDA POR PROFESSORES DO DEPARTAMENTO DE ENGENHARIA DE PRODUÇÃO DA POLI/USP. E-MAIL: ROBEMARX@USP.BR / MZILBOVI@USP.BR
Cristina Baddini Lucas - Assessora do MDT