quinta-feira, 3 de julho de 2014

Número de mortos em acidentes de moto supera o de casos envolvendo carros



Quando Bruno dos Santos Ferreira acordou, tinha perdido a perna esquerda e sete dedos das mãos. Era noite, num fim de semana de 2011. Ele pilotava sua moto na Avenida Brasil e tirou uma das mãos do guidom para coçar o olho, atingido por um inseto. Descuido suficiente para passar por um buraco, perder a direção, cair e ser atropelado por um caminhão que vinha atrás. Na época com 28 anos, Bruno foi levado inconsciente para o Hospital do Andaraí, onde teve a perna amputada. Por muito pouco não morreu. Mas viveu de perto uma trágica realidade das ruas e estradas do Rio, refletida em números que assustam: a gravidade dos acidentes com motocicletas.
Segundo dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade, da Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde, nos últimos anos morreram mais motociclistas em acidentes de trânsito no Rio do que ocupantes de qualquer outro tipo de veículo. De 2008 a 2013, foram 3.097 óbitos de motociclistas no estado, contra 2.639 de ocupantes de automóveis (458 a mais). Só nos dois primeiros meses deste ano, foram 64 motociclistas mortos (contra 40 óbitos de ocupantes de carros). Uma tendência que era diferente até 2007, quando morriam mais ocupantes de carros do que pessoas em motos no estado (3.054 contra 2.337 entre 2002 e 2007).
ACIDENTADO VOLTA A USAR MOTO
Se consideradas as internações pelo SUS por acidentes de trânsito, os pedestres são a maior parte. Mas, fazendo-se um recorte dos feridos em veículos acidentados, os motociclistas são a ampla maioria. Segundo números do Datasus, foram 3.661 internados no Estado do Rio em 2012, mais que o triplo dos 1.031 ocupantes de carros.
Após o acidente na Avenida Brasil, Bruno enfrentou infecções, foi transferido para o Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into) e, hoje, três anos depois, usa perna mecânica e ainda precisa fazer fisioterapia na unidade. Continua, porém, andando de moto.
— Depois da queda, fiquei muito triste. Pensei até em me matar. Ao voltar para casa, não queria saber da moto. Mas onde moro, numa comunidade da Tijuca, é o meio de transporte mais fácil. Tive de reaprender a usá-la. Hoje, dá para pilotar, devagar e com medo dos buracos — afirma ele, que era motoboy antes do acidente.
A declaração de Bruno aponta para uma tendência no uso das motocicletas no país. Nas grandes cidades, elas driblam o trânsito pesado, chegam a locais em que os carros não entram e são utilizadas para trabalhar. No interior, substituem tradicionais meios de transporte nas fazendas, como os cavalos, e dão mais agilidade nos deslocamentos. E, nesse compasso, aliado ao barateamento das motos e à facilitação do crédito, a frota oficial de motocicletas no Rio, segundo o Detran, ainda é um quinto da de carros: 833.482, contra 4.348.019 automóveis em maio deste ano. Mas elas se espalham mais rápido, com um crescimento de 195% da frota nos últimos dez anos, contra 58,7% da de carros.
Na região em que mora Thiago Alves dos Santos, de 23 anos, a Vila Íris, em São João de Meriti, ele conta que as motos são um símbolo de status — e proliferam. Thiago comprou a dele num leilão (uma moto de sucata que não poderia circular). Mesmo sem habilitação, trabalhava com ela como entregador de pizza. Mas, no mês passado, cansado, pediu a um amigo que a pilotasse. Estava na carona, sem capacete, quando um carro em alta velocidade entrou na contramão e os acertou.
— Quebrei o fêmur. Meus vizinhos pensam até que morri — conta Thiago, internado há um mês no Centro de Trauma Referenciado do Into.
Só ali, afirma o chefe do setor, Leonardo Rocha, mais de 70% dos casos atendidos são diretamente relacionados a acidentes de moto. Normalmente, diz ele, são pacientes de alta complexidade, politraumatizados, que ficam internados por longos períodos. Entre eles, o perfil mais comum é de homens (75%), na faixa etária entre 20 e 40 anos. Usam motocicletas de baixa cilindrada, são da Região Metropolitana e se envolveram em acidentes em vias de alta velocidade, como Avenida Brasil, Linha Vermelha, Via Dutra e Washington Luís.
— As sequelas para esses pacientes são, no mínimo, estéticas. Nos últimos dez anos, assisto a um aumento galopante dos casos de acidentes de moto, não só no número deles, como na complexidade. E o centro do problema, na minha opinião, é de educação para o trânsito. Tampouco há fiscalização a contento. As consequências disso são um custo muito elevado para o estado em áreas como saúde e previdência social — diz o médico.
FLAGRANTES DE IMPRUDÊNCIA NAS RUAS
Nas quatro grandes emergências municipais da cidade do Rio, em 2013 o panorama não foi muito diferente. No Miguel Couto, na Gávea, dos 3.893 atendimentos por acidente de trânsito, 53,7% (2.094) foram de pessoas que estavam em motos. No Lourenço Jorge, na Barra, o percentual foi de 47% (2.839 dos 6.028 atendimentos); no Salgado Filho, no Méier, de 39,4% (1.271 dos 3.224 atendimentos); e no Souza Aguiar, no Centro, de 20% (913 dos 4.545 atendimentos).
Nesse ritmo, de acordo com dados do Sistema de Informações Hospitalares do Ministério da Saúde, contidos no estudo "Mapa da violência 2013 — Acidentes de trânsito e motocicletas”, o custo das internações hospitalares por acidentes com motos no Brasil em 2012 foi de cerca de R$ 102 milhões. Esse total representa 48,4% dos gastos com vítimas de acidentes de trânsito na rede de saúde, contra 26% (R$ 54 milhões) com pedestres e 12,3% (R$ 25 milhões) com ocupantes de automóveis.
Para especialistas, um conjunto de fatores explica essa situação de tantos e tão graves acidentes: o aumento exponencial da frota, a imprudência dos motociclistas, a fiscalização incipiente ou a falta de sinalização nas estradas e ruas, entre outros. Algumas alternativas são debatidas, como a implantação de motofaixas ou centros de formação especializados para motoqueiros. Mas, enquanto as discussões continuam, são comuns flagrantes de irregularidades, como motociclistas trafegando na contramão numa engarrafada Rua Jardim Botânico ou fazendo retorno sobre a calçada na Rua Pinheiro Machado, em Laranjeiras. Mortes também seguem acontecendo, como a do motoboy Rodrigo Lopes Santiago, ontem, atingido por uma linha de pipa com cerol na Avenida Brasil. E as perspectivas não são muito otimistas.
ASSOCIAÇÃO: ACIDENTES CRESCEM 120%
Presidente da Associação de Motociclistas do Estado do Rio (Amo-RJ), Aloísio Braz, por exemplo, afirma que, segundo levantamentos do grupo, de um ano para o outro, o número de acidentes com motos cresce, em média, 120%, sem expectativas de mudanças desse quadro. E, embora órgãos como os bombeiros não discriminem as ocorrências com motos, o monitoramento feito pela associação indica que a Avenida das Américas, na Barra, é a mais crítica na cidade do Rio. Num único dia chuvoso na semana passada, diz Aloísio, foram 53 acidentes na via. E ele aponta para um outro vilão: a má qualidade do piso asfáltico.
— O motociclista hoje é um sobrevivente. Os acidentes graves, na maioria das vezes, ocorrem por causa do piso asfáltico, destruído no Rio e nas rodovias federais — diz ele, afirmando que, apesar de os números oficiais de mortes já serem assustadores, são subdimensionados.
Enquanto isso, quem anda de moto sai de casa preocupado. Sentado num tradicional ponto de descanso de motoboys em frente à Praia de São Conrado, Leandro Teixeira conta que escapou ileso de um acidente na semana passada, um dia antes de a presidente Dilma Rousseff sancionar uma lei incluindo a atividade de quem trabalha com moto entre as profissões perigosas, com direito a adicional de 30%, por periculosidade. Um caminhão atravessou a pista, e Leandro conseguiu pular. A moto, no entanto, terminou debaixo do veículo.
— Todo dia, ao sair de casa, ajoelho e peço a Deus para voltar para minha família. Sei que estou sujeito aos riscos do trânsito. Mas este é meu trabalho, o que sei fazer de melhor — dizia ele.
CRÍTICA À PERMISSÃO PARA TRAFEGAR ENTRE VÉICULOS
Julio Jacobo Waiselfiz, do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos, lembra que, a partir da década de 1990, o custo para a aquisição de motocicletas baixou em todo o país. E, segundo ele, enquanto a frota crescia vertiginosamente, um veto no Código de Trânsito Brasileiro, sancionado em 1997, foi um fator que contribuiu para o aumento do número de acidentes com motos no Brasil.
No projeto, o artigo 56 proibia aos condutores de motocicletas, motonetas e ciclomotores "a passagem entre veículos de filas adjacentes ou entre a calçada e veículos de fila adjacente a ela”, os conhecidos corredores. Mas o artigo foi vetado, sob a alegação de que a proibição tirava a fluidez do trânsito. "O dispositivo restringe sobremaneira a utilização desse tipo de veículo que, em todo o mundo, é largamente utilizado como forma de garantir maior agilidade de deslocamento”, dizia o texto do veto.
— Na minha opinião, poder circular no corredor gera uma condução perigosa — diz Julio. 

O Clobo