segunda-feira, 16 de maio de 2016

Segredos e Mistérios na Mobilidade Urbana

02/05/2016 12:15 - 

Helcio Raymundo 

ANTP




Em “Democracia e Segredo”, o pensador italiano Norberto Bobbio (1) analisa como segredos e mistérios ameaçam as instituições democráticas. O segredo foi por séculos um elemento considerado fundamental na arte de governar. 

Com o advento da democracia moderna, idealmente caracterizada como o governo cujos atos se desenrolam publicamente, sob o controle da opinião pública, o poder visível divide espaço com um poder invisível, mas poderoso, que, segundo Bobbio, assume várias formas: “aquela que se volta contra o Estado (como as organizações criminosas); a que se organiza para extrair benefícios ilícitos do Estado (como as formadas para a corrupção); e aquela que se constitui como instituição do próprio Estado (os serviços secretos)”. Pois se o poder invisível é “uma ameaça intolerável que deve ser combatida com todos os meios”, Bobbio também adverte que “quando a caça às bruxas faz sua aparição em uma sociedade democrática, a liberdade fica em perigo e a democracia corre o risco de se converter em seu oposto”. Dessa forma, a questão mais irremediável entre as promessas não cumpridas da democracia é precisamente a da transparência do poder. Afinal o “poder invisível”, aninhado no fundo falso do estado democrático, pode, pouco a pouco, “contaminar e condicionar em medida crescente as instituições legítimas”. 
Por outro lado, para Josef Pieper (2) , filósofo católico alemão, “falar de mistério não significa falar de algo exclusivamente negativo: não é referir-se somente à obscuridade. Olhando bem, mistério não significa obscuridade de modo nenhum: significa luz, mas uma luz de tal plenitude que nem o conhecimento humano nem a linguagem humana a podem captar na sua totalidade. Mistério não significa que o esforço do pensamento choca-se contra um muro. Significa, pelo contrário, que esse esforço atreve-se a penetrar naquilo que não se pode abarcar com a vista: o espaço – ilimitado em largura e profundidade – da Criação”.
Já o nosso restrito campo da mobilidade urbana, como um microcosmo do mundo real, está também envolto em segredos e mistérios. Segredos quanto às decisões dos poderes públicos responsáveis pelo trânsito e transporte de passageiros de nossas cidades e mistérios quanto à efetividade de suas ações. Segredo quanto à motivação dos “especialistas” em negar evidências científicas e mistério em se tomar partido contra a ciência. 
Nós, os ditos “especialistas”, por cálculo, inocência, vaidade ou indigência intelectual, estamos prestando um desserviço à sociedade, que inclusive nos remunera, politizando a técnica e “tecnificando” a política. A população, real beneficiada ou prejudicada pelas ações dos poderes públicos, assiste passivamente, ou toma partido de “A” ou “B”, normalmente comprando gato por lebre, tomando por base o que dizemos e ancorada no primarismo dos mais rasos preconceitos, os quais, vez por outra, endossamos. 
Vejam-se os casos das ciclovias, da redução da velocidade regulamentada, da relação entre congestionamentos e crise econômica e da licitação do transporte por ônibus na cidade de São Paulo. 
Ainda que com falhas de comunicação e problemas pontuais de aplicação das ações (segredo), São Paulo está cumprindo a cartilha do que se convencionou chamar de mobilidade sustentável. As ciclovias são criticadas da mesma forma que as faixas de ônibus o foram e pelos mesmos óbvios motivos: roubam espaço dos automóveis. Dando aos contra o benefício da dúvida, mesmo “roubando” espaço, elas, as ciclovias, perderam sua validade (mistério)? 
Há alguma dúvida (mistério) no meio técnico e na literatura quanto à relação direta entre velocidade e acidentes? As pessoas sabem que 100% das multas por excesso de velocidade são aplicadas por máquinas, que há tolerância de até 7% entre velocidade medida e velocidade real e que é necessário “controlar“ a velocidade (segredo)? Por que então insistir em denunciar a famigerada indústria da multa (mistério)? Por que certos especialistas relativizam ou negam que a redução da velocidade regulamentada, sustentada por fiscalização, reduz efetivamente a quantidade e principalmente a gravidade dos acidentes (mistério)? Faltamos àquela aula básica de Engenharia de Tráfego, não estudamos o assunto e não tivemos experiências práticas neste campo ou não somos do ramo (mistério)? 
Será que ainda teremos que ouvir dizer que o congestionamento é causado pela frota de 10 milhões de automóveis, fruto do consumo desenfreado alimentado por uma politica de crédito discutível, e que como corolário, com a crise econômica o congestionamento vai diminuir e até já diminuiu (mistério)? Meias verdades. A literatura é vasta em mostrar que a frota circulante é significativamente menor do que a frota cadastrada, que o que produz o congestionamento é, se tanto, uma pequena parcela da frota circulante e que a maioria dos automóveis fica nas garagens e nos estacionamentos a maior parte do tempo, em especial nos períodos de pico, entre outras razões, principalmente pela impedância aos deslocamentos imposta pelos congestionamentos. 
Deixo para o fim a questão da licitação do transporte por ônibus (parte visível – audiências públicas, editais etc.; e parte invisível – segredos inconfessáveis de Estado). Se a licitação do transporte por ônibus é a oportunidade bissexta de melhoria do transporte coletivo da cidade, cabe a pergunta: por que às vésperas da promulgação dos resultados o processo foi interrompido? Alguém sabe a resposta verdadeira, além da oficial, é claro (segredos e mistérios)?
Helcio Raymundo – Engenheiro, Mestre em Transportes e Consultor. Membro da ANTP

Referências
(1) - Norberto Bobbio (Turim, 18 de outubro de 1909 — Turim, 9 e janeiro de 2004) foi um filósofo político, historiador do pensamento político, escritor e senador vitalício italiano. Conhecido por sua ampla capacidade de produzir escritos concisos, lógicos e, ainda assim, densos. Defensor da democracia socialista liberal e do positivismo legal e crítico de Marx, do fascismo italiano, do Bolchevismo e do primeiro-ministro Silvio Berlusconi.
(2) Ver < http://www.ignatiusinsight.com/features2007/jpieper_philmystery_feb07.asp>, acesso em 26/03/2016.

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