24/02/2016
Mario Eduardo Garcia
(i)
O transporte urbano brasileiro continua a percorrer, penosamente, a sua
via crucis. É emblema sombrio de revés profissional de uma geração de técnicos,
gestores e empresários, condenada à impotência perplexa enquanto o usuário
sofre o inferno.
Congestionamento, superlotação, um terço do dia esterilizado nos
deslocamentos, acidentes. Será inexorável esse destino? Terá razão o poeta ao
cantar a cidade "pastora dos séculos, mãe que nos engendra e nos devora, nos
inventa e nos esquece”?
Texto publicado no site do autor:megarcia.com.br
No dia 6 de junho de 2013 o Movimento Passe Livre promoveu
ato público em São Paulo, contra o aumento das tarifas.
Novos eventos aconteceram na cidade até meados do mês,
quando uma concentração de 250 mil pessoas incendiou o país.
A demanda do desabafo tornou-se difusa. Mas a conjunção das
insatisfações unificou multidões e levou à explosão. Em 20 de junho daquele ano
em 120 cidades um milhão de pessoas foram às ruas, misturando manifestações
pacíficas, confrontos e depredações. Antes do final de junho o aumento das
tarifas foi cancelado em mais de 100 cidades.
Essas crises não constituem novidade. Na última década
protestos se acumularam em Salvador, Florianópolis, Vitória, Teresina, Aracajú
e Natal, para não citar outras cidades. Foram superados circunstancialmente,
sem melhoria significativa de um serviço público que é essencial.
Mais longe, em 1947, a recém-criada CMTC – Companhia
Municipal de Transportes Coletivos, de São Paulo, ao assumir os serviços ônibus
e bondes aumentou as tarifas de 20 para 50 centavos. A população revoltou-se,
houve quebra-quebra e cerca de 450 veículos foram incendiados.
As conjunturas eram muito diferentes em 1947 e 2013. O
primeiro evento, embora dramático, foi crise local, restrita ao serviço de
transporte público; a comoção de 2013 foi nacional e evoluiu para uma pauta
múltipla de protestos, reivindicações e questionamentos éticos. Estilos de vida
e hábitos de consumo se transformaram no interregno. Tecnologias digitais e
redes sociais tornam a capacidade de mobilização infinitamente maior. E o grau
de informação das pessoas nem se compara.
Desde 2013 a crise amorteceu, mas permanece latente, pois
não foi episódica nem se resolveu a contento. Continua propensa a reexplodir,
turbinada pelos modernos recursos de comunicação. Agora, novo aumento de
tarifas e novos confrontos, prefaciando mais um capítulo de um enredo cujo
final é indecifrável e preocupante.
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Historicamente, tem sido patente a desproporção entre o
formidável desafio da mobilidade e as modestas respostas do "establishment”
técnico-político. O exame analítico, científico, até consegue apreender o
evidente desequilíbrio entre uma oferta insuficiente e de baixa qualidade e os
frios números que representam a crescente demanda social por deslocamento nas
grandes cidades brasileiras. Mas nosso árido olhar tecnicista não desvela, na
carne, o efeito do descompasso entre o que se quer e o que se oferece, o
sofrimento diário da maior parte da população, obrigada a enfrentar estações e
veículos superlotados, atrasos, insegurança e esterilização de tempo produtivo
ou de lazer. Estudiosos da mobilidade ou decisores de suas políticas e
negócios, não dependemos vitalmente do transporte público, estamos distantes
das agruras diárias dos usuários. É patente o efeito anestésico. Não
pressentimos o potencial vulcânico de um tecido social que se torna mais
sensível neste início de século XXI, capaz de levar multidões – antes apáticas
para o embate político – a invadirem as ruas para clamar por reformas. Esse fenômeno
está na base do que aconteceu no Brasil e, com outros objetivos, também na
Turquia, na Primavera Árabe, na Grécia, na Espanha e em Wall Street.
Até onde irá essa onda não se sabe.
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Infelizmente não exploramos a oportunidade criada pela crise
de 2013 para dar início a um irrefreável movimento de reforma, digna desse
nome, do cenário de mobilidade urbana no Brasil. O tema entrou na pauta
política após as manifestações, mas perdemos o ensejo para iniciar uma transformação
capaz de levar à reinvenção de um serviço público que está devendo muito à
sociedade.
A Lei da Mobilidade já completou quatro anos, o Estatuto da
Metrópole fez seu primeiro aniversário e já se passaram quase três anos desde
as jornadas de 2013.
A prioridade obtida na agenda política foi sendo aos poucos
diluida, até se desvanecer. Muita discussão sem ações concretas, dissabores
político-administrativos, Copa do Mundo, eleições, Lava Jato, Cunha,
impeachment, os novos temas absorveram as atenções.
Perseveramos em fazer mais do mesmo. Salvo exceções, nosso
discurso pró-mobilidade, continua radical e nossa prática, conservadora.
Inegáveis realizações tecnológicas produzem avanços apenas incrementais nos
serviços. O diálogo entre a formulação técnica e a direção política prossegue
deseducado e ineficaz. Questões institucionais e gerenciais mal resolvidas
provocam a estagnação.
Não podemos continuar assim. Não podemos esperar mais.
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O que fazer? Conseguiremos evitar o caos?
Só com uma revolução cultural e material, que não será obra
de uns poucos, ainda que imbuídos de um genuino senso de apostolado. Exigirá
obstinado esforço coletivo, capaz de enfrentar e vencer espinhosa batalha em
terreno adverso.
Os argumentos:
TESE 1
Os objetivos da Política Nacional de Mobilidade Urbana,
instituídos na lei 12.587/2012, só serão atingidos se os seus instrumentos
forem aplicados com a energia necessária para romper paradigmas históricos.
TESE 2
Hoje, com raras exceções, há alheamento mútuo ou mesmo
dissonância entre as políticas de / Desenvolvimento Urbano / Infraestrutura de
Transportes / Financiamento e Políticas de Preços / Aparato Institucional.
Elas devem ser harmonizadas. São quatro pilares (i) que
devem trabalhar em conjunto. Basta um deles faltar ou falhar e o edifício não
se sustenta, frustrando os objetivos da Política Nacional.
TESE 3
A prioridade de transporte por propulsão humana / transporte
coletivo motorizado / transporte individual motorizado, nessa ordem (ii), está
sendo aplicada só por alguns pioneiros, à custa de ásperas refregas e prossegue
incompreendida na vida real. Está também desacompanhada de ações de
administração da demanda, que é tão importante quanto o aumento ou
requalificação da oferta.
TESE 4
A configuração da cidade – a forma urbana, isto é, a
distribuição das atividades no território e respectivas densidades – e os
contornos físicos da rede de transportes devem ser sustentavelmente coerentes.
O desenho imobiliário e as redes de transportes devem se "casar" como
a mão e a luva.
Isso não ocorre, pois, quando se selecionam locais para
novos empreendimentos imobiliários, a disponibilidade de transporte público,
com a indispensável "capacidade de suporte”, prescrita na teoria, na prática é
critério de importância nula ou secundária. Por outro lado, a valorização
provocada por uma nova infraestrutura de transportes causa alterações no
mercado imobiliário, modificando a forma urbana. Como resultado os serviços de
transportes ficam menos acessíveis e as viagens tornam-se mais longas,
demoradas e custosas.
São necessárias regulações e políticas compensatórias para
contrabalançar essas falhas de mercado.
TESE 5
A tarifa do transporte deve variar com a distância e nos
picos e entrepicos diários, para alinhar preços e custos. A ciência econômica
ensina que quando isso ocorre o desempenho do sistema de transportes tende para
a eficiência.
Entretanto, a ausência das políticas preconizadas na Tese 4
induz o assentamento das habitações dos grupos de renda baixa na periferia das
cidades, permanecendo os empregos próximos ao centro. Tal circunstância impede
em muitas das grandes cidades a adoção de tarifa distância no transporte
coletivo, pois seus efeitos seriam socialmente desfavoráveis no curto prazo. Ela
também não é aplicada ao transporte individual motorizado, onde teria efeito
progressivo.(iii)
Só a efetiva instauração das políticas conjugadas da Tese 2
permitirá que, aos poucos, com a gradativa mudança da forma urbana, a tarifa
distância possa vir a ser adotada no transporte coletivo, realimentando com
economia, em círculo virtuoso, novas etapas otimizadoras da forma urbana.
TESE 6
Se a renda média dos usuários for baixa e impossibilitar
arrecadação tarifária suficiente, mesmo com subsídios cruzados, o déficit só
deverá ser coberto com recursos fiscais se não houver em absoluto outras
alternativas. Dada a natureza regressiva do "bolo” fiscal no Brasil, o uso de
tais recursos será arcado em maior proporção pelos mais pobres.
A valorização imobiliária provocada por inversões públicas
em serviços de transportes deve ser revertida em benefício da política da
mobilidade. Como isso hoje não acontece, essas inversões, sustentadas pelo
contribuinte, ao beneficiar majoritariamente os proprietários lindeiros, estão
provocando transferências de renda em direção socialmente indesejável.
Quando, finalmente, o setor de transportes se apropriar da
mais valia imobiliária, para custear investimentos e operações, inclusive as
contraprestações financeiras em PPPs, esses aportes não devem ser apenas
marginais. Pelo contrário, devem ser expressivos no pacote de fontes, mediante
uso intensivo dos instrumentos do Estatuto da Cidade.
TESE 7
Salvo situações especiais a seleção da tecnologia para a
rede estrutural de transporte nas metrópoles deve dar prioridade à opção –
trilhos ou pneus – ou combinação entre ambas, tal que engendrem configurações
em malhas. Essa rede será complementada por serviço capilar que não deverá
abrigar itinerários longos. Atenderá as viagens locais e alimentará a rede
estrutural.
Sempre que u’a malha atingir densidade suficiente para
cobrir satisfatoriamente a parte da cidade que a contem, serão alocados ao
automóvel, nesse território, as externalidades negativas por ele geradas,
mediante a imposição de pedágio urbano e a precificação adequada dos
estacionamentos. Os recursos financeiros arrecadados devem ser aplicados nos
serviços de transporte coletivo.
TESE 8
Transporte de passageiros nas cidades e logística urbana de
cargas compartilham o mesmo espaço nas ruas e avenidas. Devem ser planejados e
executados de forma coordenada, com cuidadosa ponderação dos efeitos
recíprocos.
TESE 9
A política de maior impacto para a redução da poluição nos
sistemas de transportes, em especial para o controle da emissão de gases de
efeito estufa, é a substituição maciça dos combustíveis fósseis por renováveis
na frota de automóveis, com o uso do etanol no lugar da gasolina.
TESE 10
Sem perda de suas prerrogativas como concedente o poder
público deve promover com ritmo intenso a participação do setor privado no
financiamento, implantação e operação das redes de transporte. Dada a
desarticulação conjuntural do ramo de construção pesada no Brasil deve ser
estimulada com transparência a entrada de novos "players" nesse
mercado.
TESE 11
As responsabilidades pela mobilidade e pelo acesso
democrático às oportunidades da cidade cabem às três esferas de governo e aos
agentes privados que atuam nesse campo. Entretanto as metrópoles continuam
desprovidas de organismos de governança e regulação que facilitem a gestão
coordenada entre esses atores sociais e assegurem a audiência dos
"stakeholders”.
Para resolver essa séria lacuna deverão ser usados
instrumentos persuasivos, por exemplo condicionar a liberação de recursos
financeiros à criação dessas entidades. Estas deverão também propiciar transições educadas na renovação dos
mandatos governamentais, a fim de preservar a continuidade de programas de
longo prazo que obedeçam a critérios de sustentabilidade.
TESE 12
Deve ser aferido e providenciado, com apoio em
"benchmarkings”, o cabedal de recursos humanos necessários e realizados
programas de capacitação, do "chão de fábrica” à gestão superior, para governo
e setor privado. Tais programas abrangerão desde a habilitação para a implantação
exitosa de programas de infraestrutura de grande vulto até a produção dos
serviços de transporte, inclusive com aferição da qualidade pelos usuários.
TESE 13
A transformação do transporte urbano ajudará a recriar a
cidade, mais harmoniosa, acolhedora e segura, onde as pessoas se sintam bem.
Cidade para cidadãos e cidadãs de todas as classes sociais e não para coisas,
veículos, máquinas. Cidade educada, culta.
Esse propósito não é incompatível com a expectativa de
construir a cidade eficiente, dinâmica, com economia forte e produtiva. Cidade
conectada com o mundo. Cidade de oportunidades.
TESE 14
Os políticos não realizarão por si só a reforma do
transporte urbano. Parafraseando Giordano Bruno, seria uma ingenuidade pedirmos
aos donos do poder a reforma do poder.
TESE 15
Cabe aos técnicos, administradores e empresários do setor,
despidos de qualquer laivo de expectativa messiânica, desencadear o processo de
mudança, com apoio da sociedade organizada, para a concomitante validação
política.
O ambiente onde se dará a mutação não é neutro nem estático.
É um sistema social onde o jogo de forças gera barreiras e conflitos, cuja
superação exigirá a mais competente mobilização de pessoas e idéias.
TESE 16
As teses acima procuram incorporar, como conteúdos básicos
da reforma, com igual intensidade e cronologia, os quatro pilares da Tese 2. A
experiência já demonstrou sobejamente a esterilidade da ação fragmentária.
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As teses não são, nem pretendem ser, simples cânon
interpretativo da Lei da Mobilidade.
Constituem uma proposta de mudança, suportada pela Lei e
pelos Estatutos da Cidade e da Metrópole. Proposta para cunharmos um ponto de
inflexão na trajetória de nossos esforços, com agenda temporária enquanto se
elaboram os planos e pauta executiva mínima, apoiada pelos indispensáveis e
convincentes instrumentos. Tudo o mais cedo possível.
É um apelo à ação, na escala e com a urgência que a crise
impõe.
Mário Eduardo Garcia - consultor
de mobilidade
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(i) A metáfora
dos 4 pilares foi concebida pelo especialista Jorge Rebelo, quando pertencia
aos quadros do Banco Mundial. No presente texto estamos fazendo uma adaptação
de seus significados.
(ii) Enquanto
uma tecnologia de ruptura não vier a alterar essa sequência de prioridades.
(iii) A
formulação cinquentenária de William Vickrey, prêmio Nobel de economia em 1996,
permanece válida até hoje no Brasil: as políticas de preços vigentes no
transporte urbano são irracionais, atrasadas e provocadoras de desperdícios. "I will begin with the proposition
that in no other major area are pricing practices so irrational, so out of
date, and so conducive to waste as in urban transportation.” Pricing in Urban
and Suburban Transport, American Economic Review, 1963
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