segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Entrevista: Alexandre Delijaicov avalia o Estatuto da Mobilidade Urbana

Professor-doutor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), o arquiteto Alexandre Delijaicov surpreende seus alunos quando chega para as aulas montado em uma elegante bicicleta urbana, seu veículo de transporte na cidade de São Paulo.

Inimigo do automóvel, para ele uma arma perigosa que maltrata a cidade, Delijaicov concedeu esta entrevista em sua sala, na Cidade Universitária, quando falou sobre a novíssima Política Nacional de Mobilidade Urbana.

O especialista avalia que a nova lei representa um avanço, porque devolve as ruas das cidades aos pedestres e estimula o transporte por meios não motorizados.

Como você vê a aprovação neste início de 2012 da Política Nacional de Mobilidade Urbana?Considero um salto extraordinário rumo à civilização, pois vai levar as pessoas saberem se relacionar no espaço público, e também porque coloca o cidadão, o pedestre, em primeiro lugar de prioridade. Ao se voltar para o pedestre, ao ciclista, às crianças, aos portadores de problemas físicos, aos idosos, o texto toca na raiz das premissas humanistas, sociais, públicas e coletivas que almejamos. Traz a consciência de que calçada é parte do sistema viário, que deve ser larga, acessível, iluminada. Porque todos somos pedestres, ninguém é motorista o tempo inteiro. Outro ponto importante desta nova política de mobilidade é a ênfase que dá ao veículo não motorizado. É preciso dizer que a maioria da população, no Brasil e no planeta como um todo, não tem carro.
E cidades são uma construção para pessoas, não para automóveis, é isso?
O que posso dizer é: a premissa humanista, social, pública e coletiva a que me referi, e esses quatro conceitos articulados, são a antítese da lógica perversa e dissimulada de um urbanismo mercantilista e rodoviarista que quer passar a ideia de que pedestre e ciclista não contam.

O carro, que vem junto com essa lógica do capital, é uma arma, capaz de matar mais do que uma guerra civil, lotando os hospitais de atropelados e feridos.

Vejam que distorção: um pai dá o quê de presente ao filho que passa no vestibular? Podia ser uma bicicleta, mas em geral é o carro. Junto vem a carteira de motorista, que é o porte dessa arma em mãos de um jovem que, mesmo sem consciência disso, sai com uma tonelada de metal pela cidade, pondo a vida das pessoas em risco.
A instituição da nova lei, por si, pode mudar essa mentalidade? Ou vai depender de ações da parte dos governos para vingar?Toda política nacional, seja a de resíduos sólidos, seja a de mobilidade - todas são políticas complexas, sofisticadas - são na verdade o início de um diálogo, um diálogo aceito. Pressupõe um pacto federativo envolvendo união, estados e municípios. E se dá por meio de um processo democrático legítimo, de participação coletiva, que é o que constrói o imaginário de cidade que desejamos. Então, não é possível desconsiderar essa dimensão coletiva de construção do espaço público, que não é um jogo de palavras, mas um processo cotidiano, deflagrado no berçário, na escola municipal de educação infantil. Na escola, são tratados os temas transversais como mobilidade urbana - a locomoção do pedestre, do idoso, da criança, daquele que usa cadeira de rodas. Outro tema transversal é a calçada acessível e a arborização urbana, que permitirá termos calçadas sombreadas, boas para caminhar.

O professor, em seu trajeto diário pela cidade (crédito: Egberto Nogueira)
Que ações deveriam ser implementadas pelos governos e municípios para atingir metas como essas? 

O começo deveria ser com campanhas, no rádio, tevê e jornais, de conscientização da população. Ações que também atinjam os equipamentos públicos municipais de educação, cultura, esporte e saúde. Ao mesmo tempo, deve haver ações de planejamento, com projetos e obras, compreendendo um cronograma para remodelação das vias públicas, digamos num raio de até dois quilômetros de cada equipamento. Essa abrangência basta para reconstrução dos passeios de toda a malha urbana de um município com até 250 mil habitantes. Nesse plano entrariam a obrigatoriedade de calçadas acessíveis, guias rebaixadas de acesso à via, lombofaixa (lombada mais larga, que obriga o carro a desacelerar, com mais segurança e tranquilidade à travessia do pedestre) defronte a todas as escolas e equipamentos de uso coletivo.

No mínimo, as calçadas das escolas e áreas de saúde deveriam ser alargadas, dotadas de pisos antiderrapantes, pavimento contínuo para cadeirantes, iluminação e arborização. 

E em relação aos automóveis?

Defendo ainda velocidade máxima dos carros de até 30 km/h e, em frente a equipamentos de educação, saúde e cultura, 10 km/h. Ainda, câmeras em todas as esquinas para flagrar velocidades acima disto e penalizar com multas, mas multas muito altas. É uma espécie de pedágio.
A ideia de pedágios urbanos tem gerado uma reação contrária pelo fato de que o país ainda não tem um transporte coletivo de qualidade...

Esta condição pode ser a ideal, mas dizer isso é uma falsa argumentação. Os que adoram louvar cidades como Paris, Londres e outras da Europa, devem saber: o melhor transporte público é sobre trilhos - metrô, bonde. Veja que mesmo com pedágio, mesmo custando caro entrar de carro em um distrito da cidade, o trânsito de Paris é infernal. Se não tivesse o metrô, o VLT, ficaria impossível. Paris tem pedágio, assim como Londres e Oslo, uma cidade pequena da Noruega mas que também tem pedágio. Essa é uma desculpa que não cola... Poderíamos mudar isso perfeitamente se parássemos com essa política de valorizar o automóvel.

E a bicicleta? Qual sua importância na rede de mobilidade urbana?

Não precisamos ir à Dinamarca para louvar a bicicleta. Inúmeras cidades brasileiras, de até 5 mil habitantes e topografia plana tem esse veículo como solução de mobilidade. É o caso de vários municípios do sul de Minas, no Nordeste, em Caraguatatuba e em todo o litoral paulista, entre outras... As pessoas fazem uso deste transporte, com toda a dignidade, com a criança no banquinho da frente, gente idosa, todo mundo pedala. A bicicleta é destaque nessa nova política urbana aprovada, que aponta para o veículo não motorizado. Falo da bicicleta individual e também da cargueira, a bicicleta de trabalho. No meu entender, o ideal seria articular a política nacional de mobilidade urbana com a política nacional de resíduos sólidos, que preconiza os ecopontos (locais de descarte de material para posterior reciclagem) nos municípios brasileiros. Permitiria fazer uma rede integrada, sistêmica - com cooperativas, para dignificar o trabalho dos catadores - que, num raio de até 1 km, utilizariam bicicletas cargueiras no transporte de papel, plástico, do material de coleta seletiva. Porque o custo de qualquer atividade está no transporte, no combustível, e a valorização do veículo não motorizado surge como uma solução democrática, digna e econômica.

Resumindo, quais ações levariam à prática a nova política de mobilidade?

Primeira ação: reduzir a velocidade para até 30 km por hora; depois, um plano de reforma das calçadas em frente aos equipamentos públicos, como escolas e hospitais; e uma terceira ação seria implementar bicicletários em todos equipamentos municipais, o suficiente para as bicicletas de todas as crianças, professores, médicos e pacientes; e ainda bicicletários junto de estações de trem, metrô, terminais de ônibus. Esse tipo de ação é muito fácil. Temos que tirar essa arrogância do motorista de que a rua é dele, do carro. Devia ser assim: o lado direito é da bicicleta; 1/3 da largura da rua devia ser do pedestre; outro 1/3 ao veículo urbana não motorizado; e outro 1/3 para o transporte público; o carro deve pagar para entrar.

* Entrevista originalmente publicada no portal Mobilize Brasil