segunda-feira, 16 de junho de 2014

Estacionamentos: os novos vilões da mobilidade urbana

Planeta Sustentável| Planeta Sustentável
Os urbanistas são unânimes em dizer que quanto mais espaços se criam para os carros, mais carros aparecem para ocupá-los. Essa constatação é facilmente percebida em cidades brasileiras como Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, onde as taxas de motorização são altas e o tempo médio gasto para ir da casa ao trabalho é 31% maior que em Xangai, Nova York Tóquio e Paris, segundo dados levantados pelo Ipea. E os estacionamentos, em particular, ocupam espaços valiosos das cidades e suas vias, afetando de forma negativa o planejamento urbano.
Em São Paulo, onde já se discute o uso de vagas inteligentes de Zona Azul em um novo modelo, regulações antiquadas como a dos Polos Geradores de Tráfego (Lei nº 15.150) - que obriga todos os novos empreendimentos imobiliários a criarem um número de mínimo de vagas com base no seu tamanho - passaram a ser alvo de críticas de órgãos públicos, empresas e ativistas. Um dos agravantes é que a capacidade de criar vagas não aumenta no mesmo ritmo que novos carros chegam às ruas de São Paulo.
Uma pesquisa da EY Consultoria, realizada para quantificar as vagas em 15 distritos do centro expandido da capital paulista, mostra que existe lugar para apenas 384 mil carros dos 509 mil que vão para a região diariamente (leia reportagem Cadê as vagas, da revista Veja SP). Ou seja, 125 mil motoristas não conseguem vagas, passando mais tempo no trânsito procurando por elas. Os estacionamentos deixaram de ser cômodos para se tornar mais um catalisador dos problemas da mobilidade urbana em um cenário que se repete na maioria das capitais brasileiras: excesso de veículos nas ruas, congestionamentos, índices perigosos de poluição do ar e horas perdidas no trânsito atrás de uma vaga.
"Quanto mais estacionamentos se criam, mais se prioriza o uso do carro particular nas grandes cidades, que já possuem grande parte de suas áreas projetadas para seu uso e ainda assim sofrem com congestionamentos. Os estacionamentos condicionam comportamentos e escolhas nas cidades, uma vez que todos que dirigem escolhem o carro como meio de transporte pensando em estacionar", explica o urbanista americano Michael Kodransky, especialista no tema e gerente global de pesquisa do Institute for Transportation and Development Policy (ITDP), organização sem fins lucrativos com sede em Nova York que promove projetos e ideias sustentáveis de mobilidade urbana em diversos países, incluindo o Brasil. Entre os conselheiros do ITDP estão planejadores e urbanistas visionários como o ex-prefeito de Bogotá, Enrique Peñalosa, que conseguiu reinventar a antes caótica cidade colombiana do ponto de vista da mobilidade ao priorizar ciclovias e o investimento no transporte público de massa, como o Bus Rapid Transit (BRT).
No Rio de Janeiro, onde o ITDP mantém escritório, Kodransky está coordenando pesquisa inédita junto à prefeitura carioca sobre o uso de vagas no centro da cidade. Os dados colhidos serão importantes para a introdução de um novo projeto de estacionamentos, no segundo semestre de 2014, inspirado nos bem sucedidos Ecoparq da Cidade do México e no SF Park de São Francisco, EUA, que utilizam parquímetros inteligentes para fazer cobrança variável das vagas com base na demanda de certas regiões nos horários de pico.
Na capital mexicana, os resultados positivos do Ecoparq são indiscutíveis, a cidade conseguiu acabar com a ação dos "flanelinhas" e aumentar a rotatividade das vagas, tornando mais eficaz a necessidade de estacionamento no bairro central de Polanco. O tempo gasto (homens-hora) na busca por estacionamento na região caiu de 8,2 milhões de horas por ano para 1,9 milhão, enquanto o gasto de gasolina durante a procura caiu de 9,9 milhões de litros para 2,2 milhões de litros. Por consequência, a cidade conseguiu reduzir em 18 mil toneladas a quantidade de CO2 gerado pelos carros.
Michael Kodransky - que esteve em São Paulo, em janeiro deste ano, para palestra a agentes imobiliários, construtoras e incorporadoras sobre os danos causados pelos estacionamentos e o sucesso de iniciativas como o Ecoparq - concedeu entrevista exclusiva para o Planeta Sustentável. Nela, explica o impacto dos estacionamentos como paradigma não apenas na mobilidade e na densidade urbanas, mas no planejamento e na qualidade de vida das cidades.
Quando os estacionamentos para carros se tornaram um problema para a mobilidade urbana?
Os primeiros estacionamentos surgiram nas décadas de 1920 e 1930, quando o número de motoristas começava a aumentar em escala global e os carros passaram a ocupar um tamanho precioso do espaço público - o espaço entre as casas e prédios, assim como espaço por onde as pessoas antes caminhavam e passavam o tempo livre. Essa imposição do carro no domínio público atrapalhava a segurança e a vitalidade das cidades. Por isso, criaram-se estacionamentos para todo tipo de empreendimento imobiliário e destino que se possa imaginar. Desde então, cada viagem começa e termina em algum estacionamento, seja no trabalho, na escola, no hospital ou no shopping center. O problema é que, em geral, todos que dirigem, planejam suas viagens pensando na sua necessidade de estacionar, de preferência próximos ao seu destino, intensificando o tráfego local na busca por uma vaga. Com o tempo, quando as cidades atingiram seus picos de motorização, as pessoas passaram, e ainda passam, a gastar grande parte de seu tempo e dinheiro atrás de vagas, aumentando os efeitos negativos do excesso de carros nas ruas, como congestionamentos e a poluição do ar. Os estacionamentos deixaram ser uma boa ideia para se tornarem mais um desafio para amobilidade urbana sustentável.
Qual é o impacto dos espaços reservados para estacionamento nas grandes cidades?
Os estacionamentos podem ser projetados para que não sejam vistos, embora os problemas que causam persistam nas ruas. Os estacionamentos se originam nos espaços privados, mas impactam o domínio público no final da linha, enquanto todos tentam se espremer atrás de vagas nas vias, que tem uma capacidade limitada. Nas megacidades globais, o impacto é ainda maior, pois se passa muito mais tempo procurando onde estacionar. E você pode não ver os carros nos estacionamentos, mas eles continuam ocupando espaços cada vez maiores e moldando a cidade de maneira pouco democrática. Quando você junta uma ao lado da outra todas as vagas para estacionar que existem, percebe claramente que isso culmina em muito espaço apenas para os carros, erradicando a possibilidade de uma cidade mais densa, com os lugares mais próximos uns dos outros, onde se pode caminhar ou andar de bicicleta até os destinos. E o uso dessa grande área para os carros não é ativo, pois um carro passa a maior parte do tempo parado no estacionamento. Essas vagas não formam um espaço para comércios, escritórios, residências, ou seja, lugares que no final das contas poderiam movimentar a economia da cidade ou gerar impostos não apenas para um indivíduo, mas para todo o bairro ou comunidade.
Em cidades como São Paulo, existem leis que exigem a construção mínima de vagas para novos empreendimentos imobiliários comerciais e residenciais. Isso piora o cenário?
Há décadas não tiram o pó das regulações para a geração de estacionamentos como a que São Paulo tem. Esses códigos foram criados quando o número de motoristas aumentou e os congestionamentos atingiram seu pico. De fato, um dos agravantes é que as cidades passaram a incluir os estacionamentos nos planejamentos urbanos, códigos de zoneamento e regulações para as construções de novos prédios e espaços públicos. Dessa forma, urbanistas e arquitetos foram obrigados a fazer seus projetos levando isso em conta. Muitos deles se baseiam em um livro nada amigável para a mobilidade urbana do Institute of Transportation Engineers, publicado nos EUA na década de 1950, que promove a ideia de estacionamentos diferentes para diferentes estabelecimentos. Por exemplo, se você tem uma padaria, lá se encontra um esquema para construir um estacionamento para uma padaria, ou um salão de beleza, uma fábrica, uma estação de trem, etc. Isso define para cada uso específico do espaço da cidade um tipo de estacionamento e, por consequência, o que vemos é um monte de estacionamentos tomando espaço e aproveitando um valioso metro quadrado sem gerar qualidade de vida ou dinheiro. Por outro lado, se é necessário ter um estacionamento, prédios com uso misto - por exemplo, um que tenha comércio nos primeiros andares e residências nos últimos - podem tê-lo de maneira mais inteligente, pois os horários de uso se intercalam para os diferentes tipos de ocupação daquele espaço.
Como o planejamento urbano pode mudar o uso desses espaços destinados ao estacionamento para algo mais eficiente?
Em geral, as pessoas dizem "nós não temos sistemas de transporte público eficientes, então precisamos de estacionamentos", mas é aí que o planejamento entra de maneira decisiva. Não se pode mais planejar apenas com uma perspectiva em mente, no caso, a do uso do carro. O planejamento urbano deve ser feito com um pacote de ferramentas e estratégias dentro de uma visão mais abrangente, que inclua os pedestres, os ciclistas e a integração com os diferentes modos de transporte, de modo que o espaço da cidade seja mais bem aproveitado. Mais importante é que se planeje pensando no uso misto e na densidade da cidade, sem separar os diferentes usos do espaço, como acontece em Brasília, onde cada área é dividida com uma finalidade, seja de viver, comprar, estudar ou trabalhar. Dessa maneira, você impõe o uso do carro para diferentes finalidades. E muitos dos estacionamentos são planejados com base em ideias ultrapassadas como essa.
Na impossibilidade de eliminar grande parte dos estacionamentos hoje, como o uso das vagas de estacionamento pode ser mais sustentável?
Há duas distinções no uso de estacionamento, uma durante o seu pico e outra fora dele. Tem um período durante o dia em que o uso das vagas no centro da cidade e nos principais bairros comerciais atinge o máximo, ou seja, não há vagas suficientes para atender a demanda de estacionamento das pessoas que vão até esses locais de carro. Em São Francisco, nos EUA, entenderam isso e decidiram colocar em prática um projeto piloto, o SF Park, para aumentar a tarifação dos parquímetros com base na procura. Se mais pessoas querem estacionar, maior o preço. Estudo após estudo, descobrimos que o comportamento dos motoristas não é intrínseco aos seus desejos, mas baseado em suas conveniências de estacionamento e escolhas particulares de transporte no uso do carro. Então, as pessoas podem escolher diferente se o preço certo for ajustado.
A questão do pedágio urbano, por exemplo, é bastante polêmica em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Há uma enorme rejeição por parte da população. Como convencê-las de que restringir ou regular o estacionamento nas ruas pode ser uma boa prática?
Ajuda nisso o fato de que a maioria das viagens realizadas dentro das cidades é de menos de cinco quilômetros, algo que pode ser facilmente percorrido de bicicleta, de ônibus ou a pé. Em algum momento, as pessoas se dão conta e pensam "minha viagem é curta, talvez eu não precise do carro" ou "o carro vai atrapalhar meus outros compromissos, além de me custar um bom dinheiro". Esse tipo de pensamento deve ser priorizado se você não quer uma cidade como Detroit, que resolveu seu problema de trânsito se livrando de seus espaços públicos e pessoas para criar um ambiente que tem centenas, ou milhares, de estacionamentos. Aliás, há mais estacionamentos por lá do que espaços para usos ativos. O exemplo que vemos em diversas cidades americanas em fotografias aéreas é de enormes áreas de estacionamento, verdadeiros oceanos de vagas, circundando pequenas ilhas de espaço para o uso ativo. Aumentar os custos de estacionar pode ser algo muito eficiente na tentativa de mudar os comportamentos nas cidades. É preciso fazer as pessoas entenderem que na origem dos danos dos estacionamentos para a mobilidade urbana há também um custo social que as pessoas em São Paulo sentem todos os dias enquanto estão presas no trânsito. Esse custo é pago por todos, não apenas pelo motorista.
Isso se aplica às grandes cidades brasileiras, dadas as suas particularidades culturais e de planejamento?
Sem dúvida há trabalho para ser feito e se deve investir fortemente em transporte público de massa, mas também há várias áreas e bairros que possuem vantagens em suas estruturas para planejar espaços mais sustentáveis. Em bairros com ruas pequenas, calçadões e muitas esquinas, as pessoas já se sentem mais confortáveis para andar, ao contrário do que acontece em lugares com grandes avenidas e ruas que alongam as viagens. Devemos priorizar esse tipo de bairro que apresenta boas condições para o adensamento da cidade, permitindo que as pessoas andem mais ou usem a bicicleta para trabalhar ou estudar. No Brasil, em cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo, um dos problemas são as entradas dos prédios, comerciais ou residenciais, que se tornam cada vez mais afastadas das calçadas e ruas. Essas entradas, assim como os estacionamentos, também não possuem usos ativos e prejudicam a atração e o desejo de caminhar. Se você tem uma maior transparência entre os espaços privados e públicos, permitindo essa comunicação entre a rua e os prédios, se cria um desejo maior de andar. Em bairros como o Leblon, no Rio, e Vila Madalena, em São Paulo, vemos que isso já acontece assim. Não é à toa, portanto, que possuam os metros quadrados mais caros, quando comparados com outros bairros como Barra da Tijuca, ao norte do Rio de Janeiro. É simples: as pessoas gostam de andar por lá e passam mais tempo na rua. O exemplo da Times Square, em Nova York, é claro nesse sentido. Quando limitaram o acesso dos veículos e investiram em espaços paras as pessoas sentarem e conversarem, o consumo e a qualidade de vida aumentaram, revitalizando uma região da cidade que estava quase condenada pelo abandono dos negócios e das pessoas anos antes.
Quais as vantagens do Ecoparq, projeto desenvolvido na Cidade do México, sendo copiado agora no Rio de Janeiro?
Para começar, a cidade do México também sofria com o problema dos "flanelinhas", chamados por lá de "franeleros", que traziam outros problemas sociais à mobilidade por conta da informalidade e o elemento infeliz de extorsão que está inserido na sua prática. O Ecoparq formalizou o sistema de estacionamento e introduziu um esquema de gerenciamento dos parquímetros que aceitam diversos meios de pagamento, além de funcionarem com energia solar. Isso trouxe flexibilidade para os motoristas de carros e economia para a cidade, estimulando o uso de outros modais por quem vai para certas regiões apenas para trabalhar e uma maior rotatividade das vagas para quem está de passagem por conta do limite de tempo para estacionar, que é de no máximo três horas. Outro ponto importante do projeto é que o dinheiro gasto para estacionar é investido de volta na cidade em políticas públicas de mobilidade urbana e planejamento. O custo de estacionar vira um ganho para a cidade também. É importante mudar a mentalidade das pessoas de que estacionar não tem um custo para a cidade e de que aquilo é direito seu e deve ser gratuito.
Alguns especialistas acreditam que a construção de estacionamentos verticais pode ser uma solução viável para o caos do trânsito paulistano. O que você acha disso?
Não importa se você constrói horizontal ou verticalmente, já existe uma maximização da poluição e dos congestionamentos. Se você continua a construir estacionamentos, você está estimulando o uso do carro particular. Construir um estacionamento vertical facilita o acesso ao carro, mas não a mobilidade que ele terá na rua. Os problemas continuam. Eu sou um defensor da ideia de que se os estacionamentos não podem acabar, devem pelo menos ser consolidados em um único lugar, de forma que as pessoas possam se locomover de outro modo para os seus diferentes destinos. Da maneira como é - cada região tendo seu próprio estacionamento -, só atrapalha ainda mais a locomoção de quem está a pé. Normalmente, as saídas desses estacionamentos passam pelas calçadas e isso gera desconforto para quem está nelas caminhando. O pedestre além de tudo perde o seu espaço, pois a calçada deixa de ser um lugar seguro para andar.
Afinal, a solução para a mobilidade urbana é política ou de infraestrutura?
Se você olhar para São Paulo, vai ver que o trânsito já está saturado e os estacionamentos cada vez mais caros. Exatamente como aconteceu em Nova York na década de 1970, quando tratados governamentais para reduzir as quantidades de material particulado no ar foram aprovados. Naquela época, cidades como Nova York e Boston perceberam então que grande parte da qualidade local do ar estava ligada aos automóveis. Toda cidade pode decidir que tipo de cidade quer ser para oferecer qualidade de vida aos seus habitantes, porque agora as pessoas moram nas cidades não apenas por necessidade, mas por vontade própria. Elas se deram conta de que as cidades podem ser mais do que espaços apenas para trabalhar ou morar, mas também para aproveitar e ter experiências. E, pelo que pude constatar viajando pelo mundo, os espaços destinados para estacionamentos distorcem e impactam essas experiências sem que as pessoas se deem conta.
No Brasil, o que você pode ver nas suas pesquisas como bons projetos para mobilidade urbana?

No Rio de Janeiro, onde estive recentemente, há muitos bons projetos em andamento. Um deles é a implementação do Bus Rapid Transit e a possibilidade que ele oferece de integração com outros modais, como metrô, e as ciclovias. Integração é algo importante porque permite à pessoa escolher a opção que mais lhe interessa, seja a mais rápida, a mais barata ou a mais confortável. Também pude acompanhar discussões sobre a necessidade de moradias mais acessíveis e próximas dos centros das cidades, pois as pessoas mais pobres continuam longe deles e, consequentemente, dos seus trabalhos. Os mais pobres arcam quase que exclusivamente com o ônus do caos na mobilidade urbana ao levar de 3 a 4 horas para voltar pra casa. Esses debates que incluem a questão da moradia e seus efeitos no trânsito são de extrema relevância no que tange pensar a densidade de uma cidade. Nesse sentido, o Minha Casa, Minha Vida, do governo federal, pode ser um alicerce também para solucionar parte dos congestionamentos. Mas é importante que transporte público de massa seja oferecido na cidade, pois sem isso não há densidade. E critérios para um bom design urbano, bonito e atraente, devem ser estabelecidos para que as pessoas saiam mais de casa e andem com conforto pelas ruas.

"Nossa política de mobilidade tem como base a exclusão social".



Releia a entrevista especial com Nazareno Stanislau Affonso, coordenador do MDT,  para a UNISINOS , em setembro de 2009 mas, ainda muito atual

Cinco horas da tarde no centro de São Paulo. Para a maioria dos brasileiros, imaginar essa situação significa pensar na imagem de ruas completamente congestionadas, com velocidade média de 18 km/hora na Marginal Tietê, por exemplo. A maior cidade brasileira já virou sinônimo de caos no trânsito. E o problema já é uma realidade em todas as grandes cidades do país, e tão incômodo e estressante quanto em São Paulo. Enquanto isso, o Brasil investe quatro bilhões de reais para que os bancos possam financiar a produção de mais carros
. “Para mudar essa cultura, primeiro é preciso fazer uma mudança estrutural no conceito de mobilidade”, diz Nazareno Stanislau Affonso, que nos concedeu a entrevista a seguir, por telefone, onde tratou da questão da cultura do automóvel no Brasil.

Nazareno Stanislau Affonso é coordenador do Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade (MTD) e do escritório da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) de Brasília. Também é diretor do Instituto RUAVIVA .

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O Brasil demorou 50 anos para produzir 50 milhões de veículos e deverá fabricar outros 50 milhões nos próximos 15 anos, segundo a Anfavea. Qual é o significado para a vida nas cidades?

Nazareno Stanislau Affonso – Significa a concretização de uma política de mobilidade absolutamente arcaica, antiambiental, que ameaça o ser humano. O problema é que não há recursos das cidades para comportar esse aumento de frota. Se estampássemos hoje a frota de veículos como está, teríamos que investir maciçamente para que as pessoas que se deslocam com carro continuassem a fazer isso com o mínimo de qualidade. Essa política é, do ponto de vista ambiental, completamente suicida. Já do ponto de vista econômico, essa política é predatória, porque retira investimentos de um sistema que é para todos, para atender interesses de 30% das viagens no Brasil. Quem mora hoje nas cidades médias e grandes já está vivendo uma mobilidade insuportável para quem tem carro. Quem não tem carro, o problema é ainda maior, porque você aumenta o tempo de viagem, aumenta o custo do transporte. Os dados que temos, de uma pesquisa feita há mais de dez anos, mostram que o aumento do congestionamento aumenta a tarifa em mais de 15%. Nossa política de mobilidade tem como base a exclusão social. Além disso, há o genocídio no trânsito. Isso não ocorre tanto pelo crescimento da frota, mas pela liberalidade aos crimes de trânsito.

IHU On-Line – A partir de que momento o país optou pela mobilidade em quatro rodas e por que razões?

Nazareno Stanislau Affonso – Ele opta no governo Juscelino Kubitschek, quando vem aquela ideia de substituição e importação, as montadoras foram trazidas para o Brasil e criou-se aquele vício de desenvolvimento nacional, dando a ilusão de que cada brasileiro teria o seu carro. Nossa política é uma cópia do modelo estadunidense que tem como base a dispersão das cidades, construindo cada vez mais loteamentos distantes, aumentando o custo urbano. Um modelo diferente da Europa que, mesmo dependente do automóvel, as cidades são mais concentradas, têm políticas urbanas. Esse é o nosso problema: nós copiamos o modelo de mobilidade que foi planejado pelas montadoras. A General Motors planejou o fim do transporte público na década de 1920, montou uma política de destruição e vai quebrando o transporte público. Aqui fizemos algo parecido quando destruímos os bondes para liberar espaço nas vias para os automóveis e tirar uma opção de transporte público de qualidade.

IHU On-Line – A rua se transformou no espaço por excelência dos carros e as pessoas foram expulsas da rua. Sempre foi assim?

Nazareno Stanislau Affonso – Não. Muitas cidades não tinham nem divisão entre rua e calçada porque os veículos, cavalos e outros não eram elementos de ameaça ao ser humano. Quando você coloca neste espaço um veículo e vai desenvolvendo cada vez mais a velocidade de forma indiscriminada, está incentivando a violência no trânsito, por exemplo, temos algumas cidades brasileiras em que a estrada permite, como velocidade máxima, que um carro avance até 120 km/hora. E os carros são construídos para poderem chegar a 240 km/hora. É raro o carro que não faça, no mínimo, 180 km/hora. De quem é a responsabilidade de uma morte causada por um veículo que anda a mais de 120 km/hora? Eu diria que é de quem autorizou e de quem fabricou, e não do motorista. Então, começamos a ter não um veículo, mas uma arma que é dada ao ser humano para ele poder ameaçar outros. A rua passa a ser um espaço de ameaça constante à vida. Existe uma frase que diz: "Se mede a democracia de um país pela largura de suas calçadas". O carro começou a “comer” os canteiros centrais e as calçadas, as bicicletas começaram a ser ameaçadas de forma assustadora, assim como os pedestres. Os índices de morte no trânsito são de cem pessoas por dia, e entre 300 e 600 ficam com alguma deficiência. E não há política para restringir essa chacina nas ruas.

IHU On-Line – E como mudar essa cultura?

Nazareno Stanislau Affonso – Para mudar essa cultura, primeiro é preciso fazer uma mudança estrutural no conceito de mobilidade. Antes, nós tínhamos as mobilidades em pedaços, falávamos de trânsito, calçada, bicicleta, de pessoas portadoras de deficiência. Hoje, a política de mobilidade coloca tudo no mesmo saco e, quando se faz isso, começamos a ver a iniquidade de usar um espaço público com extremo favorecimento para o transporte individual. A maior parte das vias é usada pelo automóvel. Se você pega as vias onde passa o ônibus em Porto Alegre, em função das vias exclusivas para transporte público, terá 30%, mas São Paulo não passa de 10%. As medidas para que haja uma mudança estão nas mãos do governo. Em primeiro lugar, precisamos de uma política de estacionamento. Essa palavra é um tabu, porque, para mim, esse deveria ser o primeiro pedágio urbano que qualquer cidade deveria fazer. Deveríamos eliminar estacionamento de carros em qualquer parte da via. Isso tem que ser política pública, o governo tem que dizer onde pode e onde não pode ter estacionamento. Segundo: esse estacionamento tem que gerar recursos para um fundo de transporte público de qualificação de calçadas, ciclovias, faixas e outros tipos de modais.

IHU On-Line – E onde está o excesso?

Nazareno Stanislau Affonso – Está na utilização do sistema viário que não paga estes privilégios. Está na utilização indiscriminada do sistema viário, que, em algumas cidades, os carros invadem calçadas e praças, e não há fiscalização. Para mudar isso, em primeiro lugar tem que haver uma política de estacionamento, taxando os estacionamentos. A segunda política que é fundamental é retirar o transporte público do congestionamento dos automóveis. Isto significa que devem ser construídas vias exclusivas para o transporte público, não só como Porto Alegre já tem. Devem ser feitos o que hoje são chamados de corredores, que ultrapassem os pontos de parada ou, em muitos casos, se tenham duas vias para os ônibus, ao invés de uma só. E, para isso, é preciso retirar do automóvel os privilégios de usar todo o sistema viário e deixar o ônibus no congestionamento. Nas vias existentes, tem que ser limitado o acesso do automóvel, para isso já temos sistemas de controles, como os controles eletrônicos que, se o carro entra, é multado, existem barreiras físicas. Estas vias que têm estacionamento podem servir para aumentar calçadas, para fazer um corredor de ônibus, aí já mudamos a cidade inteira, não para aumentar o sistema viário dos automóveis, mais uma via de rolamento. Esta política vai ampliando a acessibilidade para quem anda de bicicleta. A bicicleta tem autonomia, em cidades planas, de 12 km, e deve se mudar uma cultura dentro das empresas, com banheiros e locais para estacionar. As calçadas devem ser acessíveis para as pessoas portadoras de deficiência. Os veículos de transporte público devem ser de qualidade, e isso já temos a lei, até 2014 todos os ônibus têm que ser acessíveis. Hoje não se pode procurar mais nenhum ônibus que não tenha elevador ou não seja acessível. Temos que mudar o perfil da frota, por exemplo.

IHU On-Line – A crise ecológica pode ser uma oportunidade para se repensar a cultura do automóvel, ou apenas substituiremos a fonte energética de propulsão dos motores. Qual é a sua percepção?

Nazareno Stanislau Affonso – O problema do efeito estufa não se resolve reduzindo a poluição. Efeito estufa é uma coisa, poluição é outra. Então, o combate ao efeito estufa não tem como ser feito sem a redução do uso do automóvel nas cidades. É inevitável que, em dez, quinze anos, o automóvel não ocupe o lugar que tem hoje. Veículos elétricos pequenos, com outro tipo de combustível, andar com produtividade total são coisas que precisamos e, ainda assim, será necessário construir políticas públicas sobre sua circulação em áreas centrais. Não há como escapar de uma política radical sobre o condicionamento do automóvel e até sobre sua fabricação.

IHU On-Line – O senhor avalia que deveríamos ter uma legislação mais rigorosa relacionada à publicidade dos carros? 

Nazareno Stanislau Affonso – Essa política hoje é absurda. Para mim, nós tínhamos de ter uma política completamente dura contra qualquer propaganda que incentivasse a violência no trânsito. O governo precisa ter um posicionamento mais duro, pois isso é uma coisa muito simples de se fazer. Quando uma propaganda incentiva a violência no trânsito, a empresa tem que ser multada. O único jeito de controlar é assim, multando. Enquanto tivermos uma comissão que só faz análise, as coisas não vão funcionar. O problema não está nas propagandas de venda de carro, mas sim no governo que disponibilizou quatro bilhões aos bancos para financiarem a produção de veículos.

IHU On-Line – É possível projetar como nos deslocaremos dentro de dez anos?

Nazareno Stanislau Affonso – Ainda é uma incógnita, mas, em dez anos, as maiores cidades deverão ter sistemas estruturais. Vai ter que ser transporte público mesmo. Eu tenho esperança que, em dez anos, possamos sonhar em instituir uma política de estacionamento. Para isso, estamos trabalhando para que a sociedade civil se engaje e possamos ter como enfrentar esse problema que foi construído de forma a promover essa política para o automóvel. Até os Estados Unidos já começaram a construir políticas e estruturas para organizar o lugar dos carros nas cidades, e na Europa já há políticas claras de gestão do automóvel.