Gostaria de começar esse
texto dizendo que nenhuma outra área política estabelece seus preços de maneira
tão irracional, ultrapassada e desperdiça tanto dinheiro quanto a mobilidade
urbana". A frase é de um artigo de 1963, escrito pelo Nobel da Economia William
Vickrey, sobre a realidade da América do Norte e da Europa. Mas era o prenúncio
de um colapso que se repetiria 50 anos depois aqui no Brasil. Qualquer um que
tente se locomover por uma grande cidade do país sente na pele a
irracionalidade mencionada pelo engenheiro. Não foi por acaso que as
manifestações que tomaram as ruas do país em junho começaram com o aumento
(cancelado) das tarifas de ônibus em São Paulo, onde os congestionamentos só
pioram. É hora de aproveitar o clima de alarme para melhorar o transporte das
nossas metrópoles. A grande questão é "como resolver o trânsito?”.
"Antes de pensar em
soluções, é preciso diagnosticar esse problema com precisão”, diz o planejador
urbano Jeff Risom, coordenador dos projetos de mobilidade do Gehl Architects,
na Dinamarca. Esse diagnóstico pode nos livrar de armadilhas, como achar que a
maioria das pessoas que se locomove pelas cidades está dentro dos carros. Na
verdade, 30,9% dos deslocamentos no país são feitos de carro, 28,9% de
transporte público e 40,2% de meios não motorizados (bicicleta e a pé). lsso
mesmo: a maioria está caminhando ou pedalando. Mas não é isso que refletem os
investimentos em mobilidade.
De acordo com dados da
Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), em 2011, o orçamento estatal
aplicado aos transportes públicos somou R$ 900 milhões, enquanto os
investimentos em mobilidade para os carros chegaram em R$ 12,6 bilhões. Ou
seja, investe-se dez vezes mais dinheiro público em infraestrutura para os
carros, que transportam a minoria das pessoas. Gastos com vias para ciclistas e
pedestres nem são mencionados no relatório, de tão insignificantes. "O
investimento em ruas e avenidas para carros gera mais veículos e mais
transito”, diz o consultor de mobilidade Mário Garcia.
O investimento em
transporte individual também aumenta a poluição e os acidentes, fatores que
custam dinheiro, mas não diretamente. São as chamadas externalidades. Em uma
medição da ANTP, a poluição e os acidentes gerados pelas viagens de carro
custam, por ano, R$ 17,2 bilhões, enquanto as feitas com transporte público
saem por R$ 4 bilhões. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas tentou acrescentar
mais variáveis à conta, como o combustível queimado enquanto os veículos estão
parados, tempo ocioso perdido no congestionamento etc, e concluiu que o
trânsito representa um prejuízo de R$ 40 bilhões por ano ao Brasil.
A má gestão dos
transportes é, portanto, um problema não só de mobilidade, mas econômico e de
saúde pública também. Vickrey, lá nos anos 1960, tinha razão: jogamos dinheiro
fora e fica cada vez mais difícil sair do lugar. Mas há uma porção de
iniciativas pelo mundo que pode nos inspirar a seguir novos caminhos.
Mais
equilíbrio
"Não são só 20 centavos”
foi uma bandeira adotada por boa parte dos manifestantes que eram contrários ao
aumento da tarifa de ônibus. O superintendente da ANTP Luiz Mantovani Néspoli
parece concordar com essa maneira de ver as coisas. "Mais do que reduzir a
tarifa, o que precisa baixar e o custo da mobilidade. Para fazer isso e preciso
equilibrar as vias das cidades”, defende.
A primeira parte desse
equilíbrio está nos investimentos públicos. "A mobilidade é uma questão
politica. Os aspectos técnicos são relativamente fáceis de resolver, difícil é
decidir quem será beneficiado”, diz o ex-prefeito de Bogotá e consultor do
Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP, na sigla em
inglês) Enrique Peñalosa. A revolução que ele causou na mobilidade da capital
colombiana e a extensão prática de suas palavras. Em sua gestão, ele investiu
em um sistema inteligente de ônibus inspirado no de Curitiba (que depois ficou
conhecido como BRT), com faixas exclusivas e estações com plataformas de
embarque que otimizam a entrada e saída de passageiros no veiculo. Para
estabelecer as rotas desse sistema, que foi batizado de Transmilênio, Peñalosa
foi na raiz do problema: removeu faixas de circulação de carros. Ele também
construiu mais de 300 km de ciclovias e criou rotas de lazer em avenidas que,
aos domingos, eram desativadas para os carros.
Para reequilibrar essa
conta, é preciso ter uma visão sistêmica dos transportes. "A mobilidade precisa
ser pensada como uma rede integrada de opções para atender as diferentes
demandas das pessoas", diz Jeff Risom. Não e o que acontece no Brasil,
onde os Órgãos que regulam a mobilidade não se articulam. O consultor Mário
Garcia aponta que gestores de metrô, trem, sistema de ônibus e vias para carros
não conseguem se planejar em conjunto porque são geridos de maneira separada.
Um exemplo a ser seguido
é o Transport for London (TFL), departamento criado pela
prefeitura da capital inglesa para coordenar o planejamento de infraestrutura e
logística da cidade. Todos os tipos de deslocamentos – a pé, de bicicleta, de
transporte público e de carro – são pensados pelo mesmo núcleo, que trabalha
com uma diretriz simples: garantir o bem estar das pessoas. Assim, as
infraestruturas para cada tipo de modal vão sendo pensadas de maneira
integrada. "Se não for assim, carros, ônibus, ciclistas e pedestres vão brigar
por espaço, em vez de compartilha-lo”, diz Risom.
Planejamento
integrado
"O reequilíbrio das vias
e opções de transporte precisa ser estrategicamente pensado com outra questão
critica da mobilidade: a deformação da cidade”, diz Garcia. Ele explica o
fenômeno comum nas metrópoles brasileiras: concentração de empregos no centro e
de residências nas periferias. "Parte da solução da mobilidade está em reduzir
sua demanda, permitindo que as pessoas morem perto do seu trabalho.”
O problema é que
transportes e habitação são duas secretarias com gestões separadas em todas as
cidades do país, o que dificulta sua ação de maneira planejada e integrada. A
solução para isso, em Copenhague, foi criar um Órgão integrado na prefeitura, o
Departamento de Vida Urbana. Qualquer projeto para a cidade, da construção de
um conjunto de apartamentos a uma ciclovia, passa por esse departamento, que
tem o poder de aprova-lo ou propor mudanças. O critério é simples: qualquer
novidade precisa deixar um legado positivo na cidade, melhorando a relação das
pessoas com seus espaços públicos.
Outro departamento
similar e o Instituto de Sustentabilidade de Portland. Criado pela prefeitura,
ele possui sedes em vários bairros da cidade e tem como objetivo promover
conexões entre a sociedade civil, o poder público, a iniciativa privada e a
academia. Um exemplo de sua atuação foi a criação de Luna ciclovia à beira do
rio Williamette, que corta a cidade: um desejo da população financiado quase
integralmente pela iniciativa privada e planejado com a ajuda da universidade
local.
Com essa deformação
corrigida, seria viável aplicar a regra de ouro da economia dos transportes,
desenvolvida por William Vickrey, o economista lá do começo desta reportagem:
cada pessoa deve arcar com os custos sociais dos seus deslocamentos. E os
motoristas de carro precisam arcar com as externalidades de poluição e
congestionamento que geram, a exemplo do Pedágio Urbano, adotado em Londres. Aí
sim a mobilidade brasileira trocaria seu ciclo vicioso por um virtuoso. E teria
espaço para se reinventar.
Um
espaço, várias funções
"O principal erro
cometido no planejamento das cidades e pensar demais no hardware e pouco no
software " , diz David Sim, do Gehl Architects. Em outras palavras: uma avenida
feita apenas para a circulação de carros é como se fosse um Ipad de última
geração com apenas um aplicativo rodando. Mas quanto mais aplicativos (de
qualidade), mais interessante seu uso. Uma avenida que não tem tanto movimento
aos fins de semana é como o iPad de um aplicativo só, mas pode se converter em
via de lazer. Uma praça pode receber uma feira durante o dia e um show à noite.
Uma avenida a beira do rio pode virar espaço para as pessoas durante o verão e
assim por diante. "Melhorar os usos da cidade reduz, também, a demanda por
deslocamento.”
Projetos de agricultura
urbana também têm esse resultado. Segundo Robert Biel, especialista no tema da
University College of London (Inglaterra), plantar na cidade é uma boa maneira
de reduzir o impacto do transporte de alimentos para consumo nos grandes
centros urbanos. Aqui no Brasil, isso normalmente é feito por caminhões que
lotam os acessos as cidades. Em Acra, Ghana, 80% do abastecimento de legumes e
verduras e feito por um cinturão verde que circunda a própria cidade. "As
pessoas consomem alimentos de mais qualidade e a cidade não fica congestionada
por caminhões”, defende Biel. "Sem contar que hortas urbanas também são espaços
de convívio entre as pessoas”, completa.
Reinventar lógica de
trabalho também ajuda a reinventar a mobilidade. O projeto Working4Utah,
adotado no estado americano de Utah, reorganizou a jornada semanal de 40 horas
em quatro dias de trabalho. As pessoas ganharam um feriadão por semana – 80% da
população aprovou a ideia. E o total percorrido por carros a cada ano no Estado
foi reduzido em 5 milhões de quilômetros, gerando uma economia de R$ 3 milhões
anuais.
Nenhuma das ideias para
você nestas páginas é teórica ou utópica. Todas foram aplicadas em cidades pelo
mundo, com resultados concretos e positivos. "E provavelmente sairiam bem mais
baratas ao governo brasileiro do que os atuais investimentos que fazem em vias
para carros", garante o urbanista Risom. São caminhos novos, que podem ser
percorridos para reinventar as cidades. Quem ganharia com essas novas rotas
seriam as pessoas.