22/02/2016
Folha de SP
Ivan Whately
Pessoalmente, nunca duvidei da inteligência de Lula, o líder
metalúrgico depois tornado político profissional. Por isso mesmo sempre
estranhei o fascínio de sua administração e da sucessora Dilma pelos incentivos
fiscais à indústria automobilística. Vanguarda do capitalismo industrial no
século 20, as fábricas de carros são hoje desertas de gente, replicam um
produto de baixo valor agregado e tecnologia ultrapassada.
Desertas de gente porque se utilizam cada vez mais de robôs
que automatizam as tarefas; baixo valor agregado porque a concorrência e a
disseminação do consumo impôs a comoditização dos veículos; tecnologia
ultrapassada como solução de mobilidade (o carro provoca congestionamentos
insuperáveis e por isso mesmo induz à paralisia das cidades e não ao
movimento); tecnologia ultrapassada também quanto à propulsão (as condições dos
mercados ainda impõem o absoluto domínio do motor a explosão, poluente e
insustentável).
Por tudo isso, não faz sentido dar dinheiro na forma de
financiamento e incentivos fiscais para a indústria automobilística implantar
mais fábricas no Brasil e, assim, vender mais carros e engarrafar ainda mais as
cidades brasileiras. Não gera empregos e não desenvolve a indústria brasileira;
sobrecarrega a infraestrutura viária, gerando custos para Estados e municípios;
provoca doenças, pressionando o já precário sistema público de saúde.
Reservadamente, os capitães da indústria automobilística já
admitiam, antes da crise, que o Brasil não tem mercado para todo o potencial
produtivo das fábricas instaladas ou em construção; e ao mesmo tempo, nossos
custos não permitem imaginar o país se tornando um dos maiores exportadores de
carros do planeta. Estávamos gestando uma grande crise estrutural para o fim
desta década. Com a recessão, a saturação chegou uns tantos anos mais cedo. Mas
o governo segue oferecendo incentivos às fábricas de carros.
Da mesma forma, nunca houve explicação racional para manter
praticamente congelado por 12 anos o preço da gasolina, incentivando o consumo
que resultou em mais poluição (e decorrentes custos para a saúde pública) e
mais trânsito (onerando as prefeituras e toda a economia das grandes cidades)
além de destruir, muito mais do que a corrupção, o valor da Petrobrás, que era
a maior empresa brasileira e hoje está à beira da falência.
Por que um presidente sagaz como Lula manteve-se de joelhos
por tantos anos engraxando sapatos da indústria automobilística?
Cheguei a pensar na dialética do senhor e do escravo de
Hegel: ambos convergem para os mesmos fins porque dependem da plenitude das
experiências um do outro. Lula precisaria da sobrevivência das fábricas de
automóveis para manter viva a aura do herói que supera a condição de operário,
se torna um líder político e depois um milionário.
Pensei também numa forma peculiar da síndrome de Estocolmo,
aquela paixão que certos sequestrados desenvolvem por seus sequestradores (o
caso mais famoso foi o da milionária norte-americana Patricia Hearst). No caso
em questão, ao chegar ao poder, o operário manifesta imensa paixão pelo
ex-patrão.
Sempre acabava pensando: que burrice pode levar um governo
de esquerda a dar incentivos fiscais a uma indústria que emprega robôs e
desemprega operários, que representa a vanguarda do atraso e produz um
transporte individual, símbolo pequeno-burguês que é a antítese do esquerdismo.
Enfim, um setor que liderou o desenvolvimento tecnológico até meados do século
20, mas hoje é um dinossauro à espera da reinvenção ou da morte.
Foi por isso um alívio ver surgirem os fatos detectados pela
operação Zelotes e constatar que, afinal, não foi tudo uma sucessão de
burradas. Ao contrário, havia uma esperteza em toda a arquitetura daquelas
medidas que beneficiavam só a indústria automobilística enquanto faziam mal aos
trabalhadores (por dar emprego a robôs), à saúde pública, à mobilidade urbana,
aos cofres públicos (por jogar fora dinheiro do BNDES e reduzir arrecadação de
impostos), ao interesse nacional, ao clima do planeta e ao aquecimento global
mas que faziam bem ao bolso dos heróis do povo brasileiro. Mais carros ferram
todo mundo. Mas alguém ganhou e mostrou que havia sagacidade atrás dos erros.
Burro, afinal, era o Leão.
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