O conceito de cidade é bastante heterogêneo. Há diversas definições que variam de acordo com o idioma ou a linha de interpretação, mas basicamente pode-se entendê-la como a transformação do meio ambiente natural para atender às necessidades das pessoas. Algumas delas legítimas, outras supérfluas, criadas ao longo da história.
A cidade nasce da fixação do ser humano em uma determinada localidade, abandonando a prática do nomadismo com o objetivo de estabilizar-se, promovendo as suas condições de subsistência e de desenvolvimento. Ao fixar-se e começar o desenvolvimento da agricultura e pecuária, surge a propriedade privada. É somente quando o ser humano estabelece limites em um determinado espaço e o torna “seu”, atribuindo valor ao espaço, antes públicos (de todos) e depois privados (de um dono), que começam a se desenvolver uma série de instituições que vão dar origem à cidade.
A origem e desenvolvimento das cidades sempre tiveram relação com a geração e acumulação de recursos. De fato, Ao longo da história a urbanização cumpriu, em diversos momentos, o papel de válvula de escape dos excedentes produzidos pela dinâmica do capitalismo. Grandes investimentos em infraestrutura e posteriores períodos de recessão/revolução são muito freqüentes na história.
Desde o plano de transformação de Paris, no século XIX, ao apogeu de Dubai e Abu Dhabi, empregando o dinheiro excedente do petróleo em urbanização, fazendo brotar cidades inteiras da noite para o dia em um processo marcado pela ostentação, injustiça social e desrespeito ao meio ambiente. No Brasil, há ameaças de bolha imobiliária com a voraz expansão da indústria da construção civil e o aumento expressivo dos valores dos imóveis. A china, que cresce brutalmente ano a ano, consume hoje a metade do cimento produzido no mundo.
Sendo um processo de construção social humana, as cidades refletem o desenvolvimento e problemas de uma sociedade. Quanto maior a desigualdade social em um lugar, maior tende a ser a iniquidade no acesso aos recursos urbanos. A construção histórica da sociedade brasileira foi marcada por um processo lamentável de desigualdade que formou uma legião de excluídos, desde os escravos aos moradores de rua das metrópoles contemporâneas, sendo a eles negados os mais básicos direitos humanos.
A ausência de uma política de desenvolvimento urbano no Brasil fez com que o espaço urbano se desenvolvesse historicamente para atender aos interesses imediatos de cada grupo social. Dentre eles, o acúmulo de capital, por parte da indústria da construção civil e dos proprietários de terra (e, posteriormente, da indústria automotiva e segmentos ligados a ela). Somente em 2001, quando a maioria das cidades brasileiras já estava com seu espaço físico consolidado, foi publicado um marco legal para o tema: o Estatuto da cidade.
Assim, a cidade vai sendo ocupada de acordo com o valor de mercado do espaço – e não de acordo com as premissas de desenvolvimento de uma cidade de qualidade, com base em um planejamento integrado. Neste processo, a classe média vai ocupar as áreas centrais, já com equipamentos urbanos ou em novos empreendimentos com toda a infraestrutura necessária; As elites vão isolar-se do restante da cidade em locais muito bem estruturados; e os mais pobres vão ficar com os espaços desprezados pelos primeiros, aqueles sem interesse para o mercado, sendo quase sempre áreas indesejáveis (de risco – ambiental ou estrutural), de ocupação ilegal (morros, vales, margens de cursos de água) ou muito distantes.
Esta dinâmica cria o panorama de desigualdade impresso em nossas cidades, dando origem ao que em urbanismo se chama de “cidades invisíveis”: áreas da cidade que raramente são vistas por aqueles que a visitam, com precária infraestrutura urbana, geralmente em bairros distantes dos postos de trabalho, abrigando milhares (e até milhões) de excluídos socialmente, relegados à própria sorte.
É neste contexto que as cidades brasileiras lidam com um aumento exponencial da população urbana nas últimas décadas. Em 1960, havia cerca de 31 milhões de pessoas vivendo em cidades no Brasil (menos da metade da população total), em 2010 este número cresceu para mais de 160 milhões de pessoas (mais de 84% da população). Esta urbanização acelerada, influenciada por uma forte migração do campo para as cidades, deu-se de forma espraiada, aumentando indiscriminadamente a mancha urbana das cidades e as distâncias, sobretudo entre as áreas de residência e trabalho.
Para suprir a demanda de novas moradias, é construída uma grande quantidade de conjuntos habitacionais em curto prazo, obedecendo à lógica de maximização de lucros por parte de grandes construtoras e especuladores, ficando o espaço público, a vitalidade urbana e o planejamento integrado da cidade como temas de importância mínima. Com a falta de espaços públicos de qualidade, espaços privados passam a tentar assumir a função de possibilitar, em maior ou menor grau, a interação social, como os shopping centers. E aí surge o tema dos polêmicos “rolezinhos”, tão falados nos últimos tempos, que são, no mínimo, um dos símbolos dos reflexos da mercantilização do espaço.
O direito à cidade está ligado à possibilidade que os diversos grupos sociais têm de se deslocarem pelos centros urbanos para exercerem suas atividades sociais. Afinal, só é possível usufruir dos direitos à saúde, educação, lazer e emprego se é possível deslocar-se pela cidade. Daí a importância fundamental da mobilidade dentro da perspectiva de qualidade urbana. Sendo tratada como produto, no entanto, e não como direito fundamental, ela obedece à mesma lógica de mercantilização atribuída ao desenvolvimento do espaço urbano.
Neste processo, pode-se destacar três fenômenos fundamentais que incidem sobre os problemas relacionados à mobilidade urbana no Brasil:
1. Crescimento urbano não planejado, espraiado e em curto prazo
Calcado nas premissas de mercantilização do espaço, o desenvolvimento urbano cria contradições que comprometem a vitalidade urbana seriamente e causam impactos na mobilidade. As regiões centrais, dotadas de infraestrutura, são, em geral, ocupadas pela classe média e alta, quando não são alvos de especulação imobiliária, fazendo com que os mais pobres, justamente os que mais têm dificuldades de pagar para usar o sistema de transporte público, morem cada vez mais longe ou ocupem espaços sem qualquer infraestrutura. O total descontrole sobre a implantação de pólos geradores de viagens é mais um reflexo da falta de planejamento integrado de nossas cidades.
O crescimento espraiado das cidades aumentou a necessidade de transporte público, que tem a sua eficiência comprometida de forma diretamente proporcional ao aumento das distâncias, devido ao incremento dos custos de operação e das dificuldades logísticas. Por outro lado, a falta de investimentos em transporte de massa, como os modais sobre trilho, aumentou os impactos causados pela formação de “bairros dormitório”, mantendo os mais pobres isolados das áreas centrais das cidades e dificultando o acesso aos recursos urbanos.
Como combater os problemas causados por este fenômeno?
- Mudar a lógica de planejamento e desenvolvimento urbano: a) promovendo as condições para que o espaço urbano seja ocupado com níveis ideais de densidade, no sentido de aproveitar a infraestrutura instalada; b) possibilitando que os mais pobres possam morar em regiões centrais, como nos centros urbanos e históricos, em geral ocupados unicamente por atividades comerciais, quando não abandonados totalmente; c) colocando em prática os instrumentos presentes no estatuto da cidade para democratizar o acesso aos recursos urbanos, promover mais igualdade social e garantir a função social do solo; d) promovendo um planejamento urbano integrado, entre política de desenvolvimento urbano, de mobilidade, desenvolvimento econômico, meio ambiente, saúde e segurança, dentre outras áreas.
2. Implantação e desenvolvimento da indústria automotiva no país e inchaço da frota de automóveis e motocicletas
A partir de sua implantação, em 1956, a indústria automotiva passa a oferecer, de forma regular e cada vez mais acessível, veículos de transporte individual, apoiada pelo aumento do poder de compra do brasileiro, pela facilitação do crédito e pelos investimentos do poder público em infraestrutura (viadutos, avenidas, pontes…) e em desonerações por parte do Governo Federal (IPI, CIDE combustíveis…) que incidem sobre o custo de se adquirir e manter um veículo automotor, assim como pela influência das classes média e alta, imprensa e da própria indústria automotiva na criação da cultura do automóvel.
Nos quase 60 anos de indústria automotiva no Brasil, o Governo Federal dedicou grandes esforços para garantir seu desenvolvimento e consolidação no mercado, justificando os investimentos realizados nestas décadas, tanto em infraestrutura rodoviária, quanto em políticas econômicas de facilitação do acesso à compra de veículos, pela importância do segmento industrial na economia nacional – a indústria automotiva representa 6% do PIB brasileiro e 23% da produção industrial total.
Não são levadas em consideração, no entanto, as externalidades negativas causadas por esta política direcionada ao desenvolvimento do transporte individual motorizado, tais como: congestionamentos; aumento dos acidentes de trânsito (cerca de 60 mil mortos, mais de 350 mil feridos e um custo de R$ 35 bilhões, anualmente); poluição ambiental (sonora, visual, do ar e do solo); hostilidade do ambiente do trânsito, aumentando a vulnerabilidade de pedestres e ciclistas; abandono do espaço público pelas pessoas; fragmentação social e espacial (com grandes limites urbanos representados por grandes avenidas, por exemplo); e a redução da eficiência e qualidade do espaço público, orientado para funções restritas (atendimento à demanda de espaço dos automóveis).
Como combater os problemas causados por este fenômeno?
Não são os carros e motocicletas os vilões de nossa sociedade. Eles só preenchem uma lacuna deixada pela inexistência de um sistema de transporte público de qualidade. A expansão da indústria automotiva e o crescimento da frota, não são, em si, um mal. Não é o fato de os cidadãos possuírem carro ou motocicleta que causa impacto no ambiente urbano, mas sim a necessidade de utilizá-los diariamente, em todos os deslocamentos que eles necessitam fazer. Muitos países com elevados índices de desenvolvimento humano e com sistemas de transporte de alta qualidade possuem índices de motorização mais elevados que o do Brasil. A diferença é que, nestes casos, as pessoas têm a opção de usar seus veículos ocasionalmente, deslocando-se cotidianamente a pé (por calçadas de qualidade), utilizando bicicletas (por espaços adequados) ou através de transportes coletivos de qualidade.
- É preciso melhorar a qualidade dos veículos vendidos no Brasil, que apresentam estrutura e tecnologia defasada em 20 anos, segundo o Latin NCAP. Somente a partir deste ano as montadoras estão obrigadas a instalarem air bag e ABS em 100% da produção. Pagamos caro por carros inseguros. Somos tratados como consumidores de segunda categoria;
- Promover um planejamento integrado no âmbito nacional. É inadmissível a incoerência entre a política econômica e a de desenvolvimento urbano no Brasil. O mesmo Governo que sanciona uma lei que trata a questão da mobilidade urbana (Lei 12.587/12), estabelecendo princípios que norteiam a absoluta prioridade do transporte não motorizado e coletivo no espaço urbano e nas políticas de investimentos, é o que segue direcionando diversos incentivos à indústria automotiva e à expansão da frota de veículos motorizados individuais;
- Implantar uma política séria de investimentos em transporte coletivo e de valorização dos deslocamentos a pé e através de modais não motorizados, associada a restrições de uso de veículos automotores individuais – e, consequentemente, responsabilização de seus usuários pelos impactos causados por estes modais.
3. Falta de planejamento integrado em relação à mobilidade e inexpressivos investimentos em transporte público de qualidade
Este fenômeno acabou formando uma imagem negativa do transporte público, fazendo com que ele seja visto, em geral, como um “mal necessário”, até que se alcance o grande sonho do brasileiro (junto com a casa própria): o primeiro carro. Mais recentemente a motocicleta entrou com muito destaque neste cenário, tendo um crescimento exponencial de sua frota e representando um grande impacto para a saúde pública e previdência social, devido ao elevado índice de acidentalidade e morbimortalidade associado a este modal. A inexistência de transportes de massa, ou a falta de qualidade nos existentes, amplia os impactos do primeiro fenômeno citado, fazendo da (i)mobilidade urbana um fator agravante da cruel desigualdade social deste país.
Apesar de os problemas gerados pelo modelo adotado pela sociedade do automóvel para a mobilidade estarem cada vez mais evidentes e alarmantes, somente nesta última década é que o transporte individual assumiu de vez a sua predominância nas viagens pelo país. Em 2009, segundo dados do IBGE, 60% dos domicílios do país tinham automóvel ou motocicleta. Sendo que as motocicletas estão mais presentes entre as famílias mais pobres. O transporte não motorizado e público tem participação cada vez menor nas viagens pelo país.
O espaço público tem sido cada vez mais apropriado pelos modais motorizados individuais, mantendo os usuários de transporte coletivo cada vez mais espremidos em espaços desconfortáveis e inseguros, configurando um ciclo vicioso de fuga do transporte coletivo e crescimento da frota de automotores de uso individual.
Assim, temos uma equação preocupante, formada por uma queda contínua no número de usuários do transporte coletivo (em proporção à população), associada ao aumento da tarifa, e um crescimento vertiginoso da frota de automóveis e motocicletas. Isto sem falar nos ciclomotores, conhecidos como “cinquentinhas” que, sem registro dos órgãos de trânsito e, consequentemente, sem controle sobre a circulação e formação de condutores, representam um grave problema no que diz respeito à segurança e saúde.
Como combater os problemas causados por este fenômeno?
- Garantir o transporte como, de fato, serviço essencial a todos, mudando a lógica de priorização do automóvel no espaço de nossas cidades. Para isso, será preciso enfrentar uma pesada pressão da indústria automotiva e de segmentos ligados a ela, assim como da cultura automobilística já consolidada no país;
- Entender a mobilidade urbana como um importante fator de integração e desenvolvimento nacional. Assim, a União deveria assumir a coordenação das ações relacionadas ao tema, incluindo o suporte ao desenvolvimento de projetos, considerando as dificuldades dos municípios e a histórica importância de instituições como a EBTU e o GEIPOT, compartilhando com os municípios a responsabilidade sobre a democratização e qualidade dos deslocamentos pelas cidades brasileiras;
- Direcionar pesados investimentos em infraestrutura e qualificação dos transportes urbanos para promover um sistema competitivo em relação ao transporte individual motorizado.
Há, basicamente, dois grupos da sociedade que não utilizam o transporte coletivo: os excluídos socialmente e aqueles que não o utilizam por opção. Os primeiros encontram-se em situação de exclusão social porque o sistema de transportes não é acessível, seja física e espacialmente ou em termos de custo. Os últimos vêem nos modais individuais motorizados uma opção mais viável devido à falta de qualidade do transporte coletivo.
Existem situações, obviamente, que fogem deste contexto, como os casos de moradores de cidades de pequeno porte que não necessitam de transporte coletivo e de usuários convictos do automóvel ou da motocicleta, motivados por convicções individuais. Porém, neste último caso, pode-se considerar a presença de aspectos da exclusão social, ainda que indireta, visto que muitas vezes o que influencia a configuração destas convicções são elementos culturais, gerados a partir da lógica excludente de mercantilização do espaço, da mobilidade e das cidades.
Não se tem a intenção de, com este texto, encerrar os temas aqui tratados. Seria muita pretensão, dada a complexidade e pluralidade dos mesmos. As ideias de como combater os fenômenos aqui explicitados não são nem originais nem as únicas ou absolutas alternativas. O cenário problemático que vivenciamos em nossas cidades só será mudado através de uma construção social coletiva em que estado e sociedade trabalhem juntos em prol de cidades mais humanas, feitas, de fato, para as pessoas.
As manifestações sociais que tomaram conta das ruas do país em 2013, principalmente em junho, representam um símbolo da força de transformação da sociedade. Elas foram muito importantes na elevação da mobilidade urbana ao mais alto patamar de relevância, dentre os eixos de desenvolvimento do país. O ganho é evidente, mesmo que não tenhamos nenhuma mudança substancial no cenário da mobilidade do país, até então.
É preciso mudar, é preciso transformar esta sociedade que está sempre em movimento.
"Um passo a frente e você já não está no mesmo lugar”
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